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A aventura da indústria brasileira de carrocerias é uma história que ainda está por ser escrita. Quase tão antiga quanto a chegada dos primeiros veículos automotores ao país, é atividade fabril pioneira, verdadeira precursora do pujante setor automobilístico da atualidade. “Carruagens sem cavalos” que eram, a construção das carrocerias dos primeiros automóveis europeus e norte-americanos dependia de ofícios tradicionais como a marcenaria e a forjaria, essenciais na secular atividade de construção de veículos de tração animal. Ainda que os motores de combustão interna fossem máquinas sofisticadas e viessem a exigir técnicas fabris cada vez mais esmeradas, os automóveis primitivos permaneceriam, por muito tempo, equipados com carrocerias – e até chassis – de madeira, com partes unidas por meio de peças de ferro batido e revestidas de materiais naturais, tais como tecidos, couro e até vime e junco.

Esta simplicidade de meios permitiu que, desde cedo, também o Brasil desse a sua contribuição na atividade. O país dispunha de marceneiros e ferreiros com conhecimento do ofício, muitos deles alemães e italianos, já havendo mesmo um incipiente artesanato (ainda não se poderia chamar indústria) de seges, tílburis, aranhas e outros veículos leves de duas ou quatro rodas, além dos tradicionais carros de boi e carretões de carga. Com a implantação das primeiras linhas de bonde de tração animal, estes artífices e seus sucessores fabricariam carros e, mais tarde, reboques para composições elétricas. Com o aparecimento dos primeiros automóveis e caminhões, foi decorrência natural que participassem igualmente da sua confecção. Era comum, nas primeiras décadas do século passado, o fornecimento de automóveis na configuração chassi-capô, dando liberdade ao comprador para que concluísse o veículo com o encarroçador de sua preferência. O mesmo ocorreu aqui: foi este o germe da indústria brasileira de carrocerias de ônibus, hoje uma das mais importantes do planeta.

Em 1904, na capital de São Paulo, os irmãos italianos Grassi abriram uma oficina de reparos e fabricação de carruagens; em 1907 construíram a carroceria para um automóvel Fiat importado da Itália; quatro anos depois, produziram seu primeiro veículo para transporte coletivo, por encomenda da Hospedaria dos Imigrantes. É provável que, antes deles, outros artesãos tenham feito o mesmo. Destes não restaram registros. Tomemos, então, os irmãos Grassi como patronos da indústria automobilística brasileira e 1907 como o ano do nascimento do setor no país. Eis aí as razões para a delimitação do período de tempo que LEXICARBRASIL contempla: 1907-2007 – os cem primeiros anos de fabricação de veículos automotores no Brasil.

Poucos registros fotográficos e quase nenhum escrito sobraram das duas primeiras décadas do século, mesmo porque era pequena a frota de automóveis do país e, até meados dos anos 20, praticamente inexistente o transporte regular de passageiros. Ainda assim, encontram-se referências na imprensa da época a iniciativas pioneiras em locais tão díspares como Macaíba (RN) e Porto Alegre (RS). Ambas de 1916, as experiências são citadas por Waldemar Correa Stiel em sua obra Ônibus: no Rio Grande do Norte, “duas carrocerias construídas nas oficinas da empresa, para 16 passageiros“; no Rio Grande do Sul, pela firma Alves & Orteiral, a construção de um “bonde-automóvel” (ônibus sobre trilhos) com mecânica Mitchell para o transporte de carga e passageiros em Novo Hamburgo. O autor relata vários casos de transportadores que optaram por fabricar suas próprias carrocerias, não apenas pequenos operadores, como um certo Sr. Mário Dantas, de Penedo (AL), em 1941, “que tomou a deliberação de construir em suas oficinas um luxuoso auto-ônibus” para 40 passageiros, como de empresas estruturadas em importantes capitais, como São Paulo (Auto Viação Paulista, em 1925) e Rio de Janeiro (Auto Viação Maracanã, dois anos depois).

Com o advento das pequenas jardineiras Grassi sobre chassis Ford, em 1924, os serviços de transporte de pessoas pouco a pouco se difundiram e foram sendo regulamentados. A partir da década seguinte, a lenta expansão da rede viária e das fronteiras agrícolas, especialmente para o oeste do Paraná, vieram a demandar deslocamentos mais longos, exigindo equipamentos de maior porte, conforto (em termos de proteção contra as intempéries) e resistência. As carrocerias abertas sobre chassis curtos foram sendo substituídas por unidades fechadas (mas ainda com cortinas, em lugar de vidraças) e de maior porte – sempre, porém, tomando chassis de caminhões como base. A frota brasileira de ônibus cresceu aceleradamente, ainda que de forma espontânea e desordenada na maioria das cidades, e assim também a produção de carrocerias.

O setor evoluiu de forma heterogênea e em todas as direções. Algumas poucas capitais passaram a exigir veículos mais adequados para o transporte de pessoas, levando à importação de chassis apropriados, que muitas vezes já vinham encarroçados do país de origem. Com eles chegaram os primeiros chassis pesados, especialmente projetados para o uso em ônibus (como os utilizados pela Light), as primeiras estruturas metálicas e os primeiros veículos com motor integrado ao salão (modelo na época chamados coach). No restante do país as soluções eram usualmente locais: carrocerias de madeira sem qualquer padronização, construídas sobre caminhões usados em pequenas oficinas, pelos próprios transportadores ou por trabalhadores especializados, em todos os casos dando asas aos seus conhecimentos e às suas fantasias.

É grande a quantidade de material iconográfico sobre o período pré-II Guerra, em alguma medida aqui apresentado. Contudo, em poucos casos foi possível identificar autores, locais de fabricação e, por vezes, até mesmo origem da mecânica utilizada, pairando dúvidas sobre se são exemplares de carrocerias nacionais ou importadas. Sabe-se da existência de algumas poucas oficinas especialmente ligadas à construção de carrocerias de ônibus (Cambuci e Imperial, por exemplo, nas quais trabalhou Fritz Weissmann), mas se desconhece seus produtos; rara exceção é a gaúcha Ott, que sobreviveu até os anos 60. Empresas industrialmente estruturadas, aparentemente só houve três antes da II Guerra: Grassi, Eliziário e Cirb (desde 1942), além da GM, importante fornecedora de ônibus durante todo o período.

No imediato pós-Guerra o setor explodiu: surgiram importantes indústrias exclusivamente dedicadas à produção de carrocerias de ônibus, fabricaram-se as primeiras estruturas de aço, chassis chegaram ao mercado em quantidade e até um novo tipo de coletivo foi “inventado” – o lotação. Fábricas se multiplicam nos estados do Sul e em São Paulo, mas sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, que se torna o maior centro produtor de carrocerias do país. Caio, Carbrasa, Cermava, Metropolitana, Nicola, Nielson – todas nasceram nesse rico qüinqüênio que vai do final da II Guerra até 1950.

Os anos 50 foram de transição. No setor, novas técnicas foram desenvolvidas: estruturas em perfis de duralumínio (ainda em 1951, pela Metropolitana), revestimento externo em chapas de alumínio, para-brisas envolventes, vidros deslizantes, janelas duplas, colunas inclinadas e componentes moldados em plástico reforçado com fibra de vidro, prática vulgarizada na década seguinte. Na segunda metade da década, impulsionado pelo governo Kubitschek, o país despertou do seu sono secular e arrancou para o futuro, vivendo as mais profundas transformações econômicas de sua história, com grandes investimentos em infra-estrutura, diversificação industrial, fortalecimento dos setores siderúrgico, químico e do petróleo e, em tempo recorde, a implantação de um completo parque automotivo nacional: sete novas fábricas de automóveis, utilitários e caminhões foram instaladas (além da Ford, GM e FNM, já veteranas) e outro tanto de tratores agrícolas e máquinas rodoviárias, chegando-se ao final do período com produtos virtualmente brasileiros e índices de nacionalização beirando os 100%.

Dois novos fabricantes de chassis se destacariam: a Scania-Vabis, com seu modelo pesado, rápido e potente, que logo se tornou o preferido na preparação de rodoviários; e, para o bem e para o mal, a Mercedes-Benz, que aí iniciou o seu império, praticamente monopolizando o segmento de chassis médios e liderando o mercado até o século seguinte. Embora também produzisse sofisticados monoblocos urbanos e rodoviários com motor traseiro e suspensão independente, o predomínio da marca se deu no extremo inferior da gama, com os toscos chassis L e LP, diretamente herdados de seus caminhões médios. Estes modelos serviriam de base para a quase totalidade dos lotações e ônibus urbanos e intermunicipais que formaram a frota do país nas décadas seguintes, seus derivados até hoje dominando o mercado em cidades importantes como o Rio de Janeiro. A chegada da Scania e Mercedes-Benz seria determinante, ainda, para a mudança do padrão de combustível da frota comercial brasileira, que já na década seguinte passaria a ter predominância do óleo diesel, em lugar do perfil até então vigente, tipicamente norte-americano, de motorização a gasolina.

O advento da indústria automobilística trouxe enorme dinamismo ao setor de carrocerias, beneficiado pela repentina disponibilidade de chassis padronizados em grande quantidade e poucas versões. O avanço técnico do setor pode ser simbolizado por dois momentos: a criação da Ciferal, em 1955, com a determinação de somente produzir veículos com estrutura de alumínio, e a construção, em 1958, do primeiro trólebus brasileiro, ainda pela pioneira Grassi. A despeito dos avanços técnicos e empresariais da época, a década de 50 conviveu com a permanência da madeira, como matéria prima, em grande número de veículos. Carrocerias foram construídas às centenas fora dos grandes centros urbanos, literalmente de norte a sul do país, desde os exóticos zepelim, no Pará, até austeros modelos executados por artesãos de sobrenome alemão no interior de Santa Catarina. Há registros de fabricação local em grande parte dos estados da federação, em alguns casos com inesperada freqüência, como no Piauí e Ceará.

Do Nordeste veio uma “invenção” local – o caminhão pau-de-arara – dado a conhecimento do resto do país durante a década de 50, associado ao intenso movimento de migração para “o sul”, ligado à rápida industrialização de São Paulo e à construção de Brasília. Ônibus primitivo, sua configuração original remonta às levas de retirantes que buscavam as cidades nordestinas durante as secas do primeiro quartel do século passado: simplesmente um caminhão com um pau roliço montado ao longo da carroceria, à altura de um homem de pé, onde os “passageiros” pudessem segurar-se durante o deslocamento. Logo receberiam cobertura de lona encerada e bancos transversais de madeira sem encosto.

Versões mais “modernas” contemplam carrocerias fechadas com decoração farta, bancos transversais e entradas laterais, como nas antigas jardineiras ou nos bondes abertos: são os chamados mistos. Viatura tradicional para o deslocamento das populações rurais até as feiras semanais, o misto subsiste em versões só para passageiros ou também para o transporte de carga e até animais. As carrocerias tipo pau-de-arara ainda permanecem em uso em muitas localidades nordestinas, tendo sobrevivido até menos de 20 anos atrás nas regiões de monocultura do Sul e Sudeste para o transporte de trabalhadores rurais, até serem proibidas pelas autoridades.

A década de 60 assistiu ao forte aumento do número de fabricantes de carrocerias de ônibus. Em grande parte desprovidos de estrutura gerencial compatível com a crescente competição, forma muitas vezes incapazes de ofertar produtos bem desenhados, de melhor acabamento e maior qualidade, como vinha fazendo a concorrência. A transição para os anos 70 foi traumática: a pior crise de mercado até então vista pelo setor levou à extinção de grande parcela dessas indústrias, inclusive a maior parte dos tradicionais fabricantes do Rio de Janeiro. Muitas pequenas empresas, porém, se mantiveram no mercado, com produtos de qualidade sofrível e baixo preço, ocupando o espaço da produção artesanal local, que praticamente desapareceria a partir de então. À depuração do setor seguiu-se, na década de 80, o crescimento e consolidação das firmas mais fortes e bem estruturadas, reforçadas por fusões e aquisições e por políticas ativas de exportação e de produto – modelo caracterizado pela Marcopolo, um dos maiores fabricantes mundiais da atualidade.

Os anos 80 foram palco de importantes avanços na qualificação dos equipamentos e na gestão dos sistemas de transportes públicos de passageiros. Importantes eventos do período falam por si: a criação do primeiro sistema de transporte urbano com integração física e tarifária do país, em Curitiba; a coordenação, pelo Ministério dos Transportes, do projeto Padron, definindo as características mínimas que um ônibus urbano deveria ter, dentre as quais motor central ou traseiro, suspensão pneumática e portas largas; o programa de apoio do Ministério dos Transportes à troncalização e integração dos transportes por ônibus em diversas capitais; o financiamento do BNDE a vários projetos de trólebus em cidades médias e grandes; a fabricação, pela Volvo, do primeiro chassi especialmente projetado para ônibus urbano do país; o lançamento, ainda pela Volvo, do primeiro chassi articulado e do único bi-articulado brasileiros.

Diversas prefeituras municipais se engajaram no esforço de modernização de seus sistemas de transporte público, mas a receptividade não foi unânime. A principal reação – muitas vezes raivosa – veio de parte dos empresários de ônibus, que se recusavam a abandonar os velhos Mercedes-Benz de motor dianteiro por veículos próprios para o transporte de pessoas. Como solução para as grandes demandas não atendidas, algumas empresas de transporte sulistas se aliaram a fabricantes de equipamentos e tentaram encontrar soluções paliativas, na base da improvisação, já vista nos antigos papa-fila dos anos 50, tais como composições romeu-e-julieta e até caminhões pesados acoplados a reboques com articulação. Nenhuma destas tentativas vingou. Hoje o mercado dispõe de grande variedade de chassis e plataformas nacionais de dois eixos ou articulados, com suspensão pneumática, caixa automática e piso baixo, com motor diesel central ou traseiro de grande potência, tração elétrica ou híbrida.

Novas encarroçadoras nasceram nos anos de transição entre os séculos XX e XXI, estimuladas pela vitalidade de um setor que não cessa de crescer, favorecido pelo desempenho da economia a partir de meados da primeira década. Foram poucas as empresas citadas neste texto, mas LEXICAR conta a história de todas elas está contada em suas páginas próprias. Muitas tiveram vida curta e inexpressiva; várias encontraram importância local, embora fossem desconhecidas fora da sua região; algumas tiveram presença marcante enquanto sobreviveram; poucas atravessaram o tempo com saúde e vitalidade: de todas elas procurou-se contar a história e descrever a trajetória nas rubricas correspondentes.

Esta página é dedicada à carroceria “desconhecida”, àquela construída por pequenas oficinas, transportadores e operários especializados que, com sua criatividade, puseram o país a rodar. A galeria a seguir está organizada da seguinte forma:

  1. até 1940, carrocerias construídas no Sul e Sudeste: imagens 1-59
  2. décadas de 30 e 40, carrocerias construídas no Nordeste: imagens 60-91
  3. décadas de 40 e 50, carrocerias construídas no Sul, Sudeste e Centro-oeste: imagens 92-145
  4. década de 50, carrocerias construídas na Região Norte: imagens 146-180
  5. década de 50, carrocerias construídas no Nordeste: imagens 181-200
  6. carrocerias artesanais tipo coach: imagens 201-211
  7. caminhões com carroceria mista: imagens 212-233
  8. diversos: imagens 234-245




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