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O automóvel moderno acionado por motor a gasolina, como o conhecemos hoje, foi “inventado” em 1886 pelos alemães Gottlieb Daimler e Karl Benz, trabalhando separados e desenvolvendo veículos muito diferentes entre si. Apenas seis anos depois, em 1892, o primeiro automóvel aportou ao Brasil: um Peugeot, trazido da França por Alberto Santos-Dumont, então com apenas 19 anos de idade, quando retornava de uma das suas muitas e demoradas estadias na Europa. Os automóveis logo despertaram a paixão e tornaram-se objeto de desejo dos (pouquíssimos) brasileiros que dispunham de cultura e discernimento para perceber e aceitar o papel revolucionário da novidade e, principalmente, de meios financeiros suficientes para adquiri-los.

Alguns daqueles sem recursos para comprar um carro, caso dispusessem de habilidade manual e conhecimento técnico adequados – atributos raros, aliás, em um país de bacharéis que mal abolira o trabalho escravo – podiam recorrer à autoconstrução, já que os primeiros automóveis careciam de sofisticação tecnológica e, à exceção do motor de combustão interna, pouco mais eram do que carruagens autopropelidas.

Não foi por acaso, aliás, terem sido imigrantes os responsáveis por dois eventos seminais, marco inicial da indústria automobilística brasileira: entre 1903 e 1904 a montagem, por Claudio Bonadei, de um automóvel completo para seu uso próprio, aproveitando um motor francês de 3,5 cv e construindo pessoalmente chassi e grande parte dos acessórios e elementos mecânicos; e a primeira carroceria de automóvel comprovadamente fabricada no país, pelos irmãos Grassi, em 1907. A oficina dos Grassi, inaugurada em 1904, se tornaria nas décadas seguintes a mais importante fábrica de carrocerias de ônibus do país, germe de um pujante segmento industrial do qual o Brasil é hoje um dos líderes mundiais. É sugestivo que as duas iniciativas tenham ocorrido na cidade de São Paulo, quase que simultaneamente, e tendo como agentes dois extremos da escala social: a alta burguesia paulista, enriquecida com o café e a indústria, que viabilizou a Grassi como empresa fornecedora de carrocerias para os automóveis de luxo por ela importados, e um operário, o mecânico Bonadei, incapaz de comprar um carro para a família, que usou seus braços e sua experiência pessoal para satisfazer um desejo de outra forma inacessível. Tino comercial e iniciativa individual, que resumem tantas histórias (nem todas bem sucedidas) relatadas em LEXICAR.

Esta aventura começou bem antes, porém, com a pulverizada indústria artesanal de veículos de tração animal – carruagens, carroças, charretes e bondes – fabricados em diversas regiões do país. (Mesmo nesta predominavam os imigrantes, como pode se notar pela relação de fabricantes ativos na cidade paulista de Campinas, em 1872: para um sobrenome brasileiro/português, Sampaio Peixoto, havia seis estrangeiros – Bierrenbach, Krug, Agut, Mahulot, Meyer e Closel.) Embora pouco documentadas, ainda no século XIX houve iniciativas ousadas, como a de Francisco Antonio Pereira da Rocha, que em 1871 montou um pesado veículo a vapor em Salvador (BA), com motor Thompson, ao qual foi acoplado um reboque para acomodar passageiros. Gigantesco, o carro tinha quatro rodas, mais uma direcional à frente, e acabou sendo destruído num acidente durante uma excursão a Rio Vermelho. Ou ainda a de um certo cavalheiro residente em Pelotas (RS), “dotado de gênio empreendedor e laborioso”, que em 1875 informou à imprensa estar projetando um carro “que rodará para qualquer parte da cidade sem o auxílio de vapor ou de força animal” – do qual não mais se teria notícia.

Esta criatividade pode ser simbolizada pelo incansável Alberto Santos-Dumont, nosso maior inventor, que a partir de um componente automobilístico – o motor de combustão interna – tornou dirigíveis seus balões e elevou aos céus o primeiro aparelho “mais pesado do que o ar”. Dumont introduziu diversas modificações técnicas nos engenhos que utilizava e criou inovações mais tarde aproveitadas pela indústria de automóveis (tais como os amortecedores de borracha de seus aeroplanos 14 Bis e Demoiselle). Em 1897 montou um motor de dois cilindros e 3,5 cv, unindo duas unidades com um cilindro de um triciclo francês; compartilhando cárter, virabrequim e carburador e eliminando componentes julgados inúteis, trouxe a relação peso-potência para abaixo dos 10 kg/cv então vigentes na indústria. Santos-Dumont aderiu aos automóveis desde que os conheceu, utilizando-os inclusive como meio de transporte para suas aeronaves. Pra isto, procedia à adaptação dos carros, transformando-os em veículos leves de carga – algo como as atuais picapes, modalidade então inexistente.

Ao longo do novo século, com a massificação da produção de carros e sua cada vez maior complexidade, passava a ser mais difícil (e desnecessário) replicá-los. O país, orgulhosamente agrário e patrimonialista, mergulhado em um ambiente de atraso, a um só tempo dependia da exportação do café e desprestigiava o trabalho manual e as profissões hoje ditas tecnológicas. O desestímulo à indústria, a dependência (econômica e cultural) do exterior e a conseqüente baixa auto-estima do brasileiro médio impediram, por décadas, qualquer pretensão à fabricação local de veículos automotores, ainda que experimental.

O país teria que aguardar muitos anos até que sua indústria começasse a dar sinais de vitalidade: à exceção da Companhia Siderúrgica Nacional, na década de 40, resultado de barganha política entre Getúlio Vargas e o governo dos EUA, o “Brasil industrial” só começaria a mostrar sua face desenvolvimentista nos anos 50, com o segundo governo Vargas, a proliferação do setor de autopeças e a criação da FNM e Petrobrás, finalmente explodindo na segunda metade da década com os “50 anos em 5” de JK e a implantação da indústria automobilística nacional.

Ainda assim, mais seis projetos significativos da primeira metade do século devem ficar registrados. O automóvel projetado e construído entre 1914 e 1915 por professores e alunos da Escola Profissional Masculina de São Paulo, havia três anos inaugurada no Brás; fora carburador e magneto, todos os elementos mecânicos foram desenhados e produzidos no local, utilizando ferro de Minas Gerais e, para a carroçaria e as rodas, madeira de São Paulo e do Paraná. Durante a I Guerra Mundial, no Rio de Janeiro (RJ), a construção de carrocerias de automóveis e furgões pela Garage Avenida. Em 1929, também no Rio de Janeiro, a apresentação de um caminhão de fabricação totalmente nacional – inclusive o motor; batizado Bandeirante, foi construído pelo engenheiro português José Augusto Prestes, proprietário da firma A. Prestes & C. Ltd..

No ano seguinte, a iniciativa partiu da Companhia Gazogenios Esperança, que promoveu um longo raid de um caminhão Chevrolet pelas precárias estradas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de janeiro, procurando demonstrar as vantagens do uso do carvão vegetal como combustível – “entre 86 e 96% mais econômico do que a gasolina“. O quinto projeto, em 1930, foi um avançado esportivo desenhado pelo alemão Joachim Küsters, em Salvador (BA). E, na segunda metade da década de 30, as pesquisas pioneiras de utilização do álcool como combustível e o trabalho de catequização do engenheiro Lauro de Barros Siciliano, da Escola Politécnica da USP, defendendo a viabilidade da fabricação de motores no país.

Em paralelo, à margem do imobilismo industrial do país e ainda que não se pensasse na produção local de veículos completos, se multiplicaram os pequenos fabricantes de carrocerias de ônibus e caminhonetes. Também foram preparados os primeiros carros de competição brasileiros (em 1931, por Cassio Muniz, sobre chassi Chevrolet importado). Novos automóveis autoconstruídos, contudo, só voltariam a surgir com alguma freqüência nos anos 50.

A presente rubrica trata dos veículos artesanais montados até 1960, ano da consolidação da indústria automobilística nacional. Carros que foram objeto de tentativa de produção seriada estão individualmente descritos em rubricas próprias, sob o nome do modelo ou do seu construtor; da mesma forma, protótipos e estudos de estilo. Exemplares construídos a partir de 1961 serão encontrados no verbete Fabricação Própria (em categorias/automóveis). Carrocerias de ônibus estão organizadas por marca do fabricante ou, quando não identificadas ou de produção esporádica, sob a rubrica Ônibus (em categorias/ônibus/carrocerias). Veículos de competição estão relacionados pelo sobrenome do construtor (normalmente um piloto), pelo nome do modelo ou, quando produzidos em série, pelo da empresa fabricante.

Em um caso ou em outro, contudo, – carros construídos antes ou depois de 1961 – poderá haver exceções em sua localização em LEXICAR, já que as criações mais notáveis mereceram verbetes específicos, devidamente  relacionados em categorias/automóveis/protótipos e fabricação própria. Dentre eles estão os seguintes: Casini, Chemuniz, Cysne Prateado, Küsters, Lepper, Monarca, Pinar, Tupi e Woerdenbag.





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