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RÖHE | galeria

Sediada no Rio de Janeiro (RJ), a firma Röhe & Irmãos construiu carrocerias de automóveis para chassis importados na primeira década do século XX. Uma das primeiras indústrias constituídas após a Independência do país, a Röhe teve uma história singular no ambiente agrário e escravocrata do Brasil do século XIX.

Fundada em 1831 pelo alemão Johann Ludolph Wilhelm Röhe (tendo “ofício de ferreiro e construtor de viaturas“), recém-chegado de Hamburgo aos 18 anos de idade, se tornou a primeira grande oficina de carruagens do país. A Johann, três anos depois se juntou seu irmão Anton Heinrich Rudolph, com “ofício de correeiro“, vindo a completar as três habilidades essenciais ao perfeito desenvolvimento do negócio – o conhecimento do trabalho com madeira, ferro e couro.

A variedade e a qualidade dos produtos dos irmãos rapidamente levou a Röhe a conquistar a liderança do mercado da Capital do Império. A carência de mão-de-obra especializada foi inicialmente suprida por grande número de operários trazidos da Alemanha, ao mesmo tempo que era criada uma escola de artífices, que posteriormente, já formados, se espalhariam por outras províncias do país e pela Argentina.

Em 1844 a Röhe transferiu suas instalações do Centro do Rio para a rua Nova do Conde (pouco depois rua do Conde d’Eu, hoje rua do Riachuelo), então nos limites da área central; já possuía mais de cem empregados (seis dos quais escravos). Se tratava de empresa modelar, com padrão técnico e industrial então raramente observado no país. Relato da época dá conta de que a “fábrica está montada segundo as regras seguidas na Europa, por isso tem dentro todas as oficinas necessárias ao mesmo estabelecimento, hospeda e alimenta todos os trabalhadores [e recebe] no estabelecimento grande número de aprendizes, tanto brasileiros como estrangeiros“.

A partir de 1850 a empresa passou a divulgar seus serviços através de pequena inserção no Almanak Laemmert (oficialmente “Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro”), o monumental anuário de informações sobre a administração pública, a indústria, o comércio e os serviços da Corte, publicação criada em 1844 e ativa até o final da década de 40 do século seguinte. O anúncio (que seria anualmente reproduzido até 1869) dizia: “Fabricantes de seges, carruagens e arreios de todas as qualidades e do gosto mais moderno; proprietários do privilégio exclusivo de fabricação dos carrinhos de duas rodas chamados timons balancés, reconhecidos pela sua duração, segurança e excelente comodidade“.

A qualidade dos trabalhos executados pelos Röhe seria amplamente reconhecida e seus produtos viriam a se destacar nas feiras e exposições das quais tomariam parte ao longo da segunda metade do século. Em sua primeira participação, na II Exposição Nacional de 1866, foi o único presente na seção Material Rodante de Transporte, com uma meia caleça elogiada pela comissão julgadora como de “excessiva perfeição“, “admirável exatidão” e “primoroso trabalho“, “dificultosamente [sendo], mesmo nas fábricas europeias, melhor acabada“.

Em 1868 o comando da empresa foi transferido para os herdeiros João Lindolpho (filho de Anton), Henrique Christiano e Guilherme Frederico (filhos de Johann). A linha de veículos Röhe já era extremamente variada, incluindo landaus, berlindas, cupês, caleças, meias caleças, vis-à-vis, vitórias, tilburis (dentre os quais o timon balancé), cabriolés, dog-carts, phaetons, ponny-chaises, diligências, troles (“para as fazendas do interior“) e liteiras. Além de mantê-los em produção, os primos modernizaram a comunicação da firma com o “mercado”, dando início a uma longa série de propagandas de página inteira no Almanak Lemmaert, e já na primeira delas, de 1870, tomaram o cuidado de ressaltar a Medalha de Prata conquistada na Exposição de 1866.

Em 1873 a Röhe incluiu novo item entre suas “especialidades” – a construção de bondes (ou, na linguagem da época, “carros para trilhos urbanos, para condução de passageiros e cargas“). Naquele mesmo ano a firma se associou ao Banco Industrial e Mercantil do Rio de Janeiro; a partir daí, com a participação de um presidente de banco na Diretoria, o padrão de tomada de decisões, que havia mais de 40 anos vigorava na empresa, foi radicalmente alterado.

No ano seguinte, concretizando a desejada diversificação da linha de produtos, foi firmado contrato com a concessionária carioca de bondes Companhia Fluminense Ferro Carril, visando a prestação de serviços de manutenção e o fornecimento de 26 carros, sendo 20 abertos e seis fechados. As especificações definiam que os veículos seriam de “peroba e cedro, as rodas [seriam] americanas, de raios, e toda a ferragem a mais leve possível, sem prejuízo da solidez“. A encomenda se desdobrou em vendas para outras cidades e, logo a seguir, no ingresso no mercado ferroviário, eventos que viriam a compensar parcialmente a redução contínua na venda de veículos a tração animal, acentuada pela implantação do serviço de bondes na Cidade, em 1868.

A associação com o Banco e a entrada em novos segmentos levaram à necessidade de se lavrar nova escriturara, definindo objetivos e responsabilidades. Firmada em 1877, ficou acertado que a sociedade teria por fim “o fabrico de carros, wagons para estradas de ferro a vapor ou tração animada, materiais para construção, ferraria, fundição e o mais que convier“. Também foi acordado que Guilherme Frederico seria o responsável pelas “oficinas de ferro e desenho“, João Ludolfo pelas “oficinas que trabalham em madeira” e Henrique Cristiano “pela oficina de pintura e controle do armazém e expediente“. Implícito está, pois, que a empresa englobava cinco áreas de atividades: construção de carros de tração animal e veículos sobre trilhos, fabricação de arreios, fundição de ferro e bronze, serraria a vapor, e fornecimento de madeiras aparelhadas para construção de casas, esquadrias, escadas, quiosques, chalés e assoalhos. A este rol logo viria a se juntar a produção de carteiras escolares, bancos para jardins e mobiliário doméstico.

Em 1881 a Röhe possuía 195 empregados (dos quais 15 crianças) e força motriz a vapor totalizando 52 cv, capaz de acionar 63 máquinas diversas. Suas instalações ultrapassavam 12.000 m2, compreendendo oficinas de carpintaria, ferraria com 14 forjas, de rodas de madeira, fundição de ferro e marcenaria, além de duas “vastíssimas salas de desenho“, instalação raríssima no Brasil de então.

Até aquele ano a empresa produzira mais de mil carros de duas e quatro rodas, cerca de 300 vagões para diversos fins e mais de 150 bondes de vários modelos e dimensões, inclusive 15 exportados para Montevidéu, Uruguai. Ainda fabricava veículos de tração animal, mas cada vez mais se voltava para equipamentos pesados de transporte de cargas e passageiros. Diversos pedidos de patente foram requeridos naqueles anos, desde métodos construtivos de tilburis até projetos de veículos sobre trilhos.

Ainda em 1881, com grande sucesso, a Röhe participou da Exposição da Indústria Nacional, ao lado de 1.120 outras firmas, recebendo seus produtos uma Menção Honrosa e dez Diplomas, cinco de Mérito e cinco de Progresso. Segundo o Jornal do Commercio, foi “uma esplendida e grandiosa exposição da casa Röhe, composta de wagons, bonds, bancos-escolas, mobílias bonitas e baratas de pinho, fingindo madeiras finas, modelos de grades, jogos fundidos de rodas para wagons, bonds, etc.”. (…) “Este estabelecimento, que adquiriu noutro tempo grande voga no fabrico de carruagens“, (…) “possui as máquinas mais notáveis e aperfeiçoadas, algumas mesmo em duplicata, distribuídas em extensos barracões dispostos com as necessárias condições de luz e higiene“.

A Röhe & Irmãos e a Estrada de Ferro D. Pedro II foram os grandes destaques na seção Material de Transporte e Acessórios de Estradas de Ferro da Exposição. Este reconhecimento é especialmente relevante ao se constatar a precariedade da indústria brasileira de então, esparsa e tecnicamente pobre, concentrada nos setores ligados ao extrativismo, vestuário e alimentação. Raríssimas eram as industrias metal-mecânicas de maior porte.

Por razões não identificadas, no início da década de 80 a Röhe se deparou com grave crise financeira, levando-a a se envolver com processos judiciais e penhoras de bens. Em meados de 1883 a firma foi vendida para a empresa Companhia Constructora, constituída poucos meses antes e sem tradição industrial. A razão social foi alterada e a finalidade simplificada para “construção de carros e fornecimento de materiais para estrada de ferro“. Os três Röhe foram afastados da administração e, de antigos proprietários solidários, seguiram independentes, cada um com rumo próprio.

Guilherme Frederico, instalado na mesma rua do Conde d’Eu, em terreno vizinho à Companhia Constructora, tornou-se Construtor, tendo como especialidade “obras arquitetônicas e mecânicas, por empreitada ou administração, oficina de construção de prédios e mercearias, projeção [projeto] de veículos rodantes para estradas ordinárias e vias-férreas e gabinete de desenho“. João Ludolpho, com alguns sócios (inclusive Guilherme Frederico), fundou a Röhe & Lima, em Barra de Itabapoana (RJ), dedicando-se ao “negócio de madeiras e serraria a vapor“.

Henrique Christiano, por sua vez, permaneceu construindo viaturas, também em prédio vizinho à sua antiga fábrica. Continuando a tradição da família, rapidamente retomou a produção, em instalações modernas e bem equipadas (em 1907 contaria com 60 operários e força motriz a vapor), construindo produtos de qualidade (já em 1894 vendia seis carros para o Serviço de Assistência Pública de São Paulo).

Estranhamente, após substituir toda a Diretoria um ano depois de assumir o controle da Röhe, a  Companhia Construtora perdeu toda a relevância comercial, jamais voltando a constar da relação de fabricantes do Almanak Laemmert. Henrique, por seu lado, voltou a ser presença constante no anuário, começando com uma pequena inserção, em 1885 (dizia: “Fabricante de carruagens leves: sua especialidade é trolls e arreios“). Em 1891 retomou as campanhas publicitárias, sempre identificando-se como “Henrique Christiano Röhe, Casa fundada em 1831“, permanecendo fortemente ativo até 1905.

Para reconquistar o mercado, optou por se restringir à construção de carruagens leves, especialidade primeira da antiga Röhe & Irmãos. A concorrência, no entanto, não era a mesma de meio século atrás: na passagem do século, mais de duas dezenas de pequenos fabricantes disputavam um mercado rapidamente decrescente. Uma das saídas encontradas foi agregar viaturas para usos específicos às suas “especialidades”, no caso optando por carros fúnebres e para condução de enfermos (um de seus carros funerários chegou a receber matéria elogiosa de uma revista técnica prussiana).

A segunda saída foi buscada na nascente indústria automobilística mundial. Acompanhando a tendência de muitas outras pequenas oficinas brasileiras, que passaram a assumir a construção de carrocerias de automóveis como atividade paralela, também Henrique abraçou a nova atividade. Foi em 1906 que, pela primeira vez, o anuário Laemmert introduziu a categoria “Automóveis (fabricantes, depositários importadores, empresas e concertadores de)” em seus índices, e naquela mesma edição Röhe se apresentou como fornecedor de “carros automóveis“. Em anúncios de jornal de 1910 a firma se coloca como “fabrica de carros e carroçaria, de automoveis de commercio e de luxo; concertos e reformas geraes em automoveis e carros“.

Infelizmente, nenhuma imagem de automóveis encarroçados pela Röhe foi até agora identificada. As peças publicitárias, tão ricas em ilustrações e quantidade, características da empresa de Henrique, se extinguiram. Também se desconhece a quantidade e as marcas dos carros que receberam suas carrocerias. Sabe-se apenas que até 1914 Henrique Christiano Röhe esteve presente na  seção Automóveis do anuário Lemmaert. As atividades como fornecedor de veículos de tração animal duraram mais três anos, até seu falecimento, em julho de 1917, quando o nome Röhe deixou definitivamente de constar da publicação.

Aparentemente a firma deixou de operar pouco antes do final da I Grande Guerra.

 

[LEXICAR agradece a Jason Vogel pela primeira informação sobre a existência da Röhe. O relato sobre a trajetória da empresa até 1885 tomou por base a tese de Mestrado “Uma família em dois momentos: os Röhe e as transformações econômicas no Rio de Janeiro”, elaborada por Marcus Vinicius Kelli, em 2011, para o Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF. A quase totalidade das imagens apresentadas na galeria foi encontrada na coleção do Almanak Laemmert, digitalizada pela Biblioteca Nacional.]





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