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GURGEL (i) | galeria

A história da Gurgel se confunde com a do seu fundador, o engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, paulista nascido em Franca, em 1926, e formado pela USP aos 23 anos de idade. O interesse de João Augusto pela mecânica se manifestou desde criança e seu caráter questionador, contrapondo soluções inovadoras – por vezes revolucionárias – aos obstáculos e desafios técnicos surgidos no dia-a-dia, o acompanhou por toda a vida. Ainda estudante seu interesse se voltou para os automóveis, sonhando desenvolvê-los e fabricá-los no país. Obstinado pela idéia, desde cedo se preparou para a tarefa e, mesmo antes de se graduar, construiu (em 1947) um protótipo operacional de veículo anfíbio a hélice, com três rodas e motor de avião.

Graças ao alto desempenho obtido na universidade, recebeu no início da década seguinte uma bolsa do General Motors Institute, nos EUA, onde permaneceu até 1953, estagiando nas fábricas GM de Flint e Pontiac. Lá testemunhou os primórdios da utilização da tecnologia do plástico reforçado como matéria-prima para a construção seriada de automóveis, da qual a própria GM foi pioneira com o lançamento, naquele mesmo ano, do Chevrolet Corvette. De volta ao Brasil, João Augusto trabalhou por alguns anos nas filiais brasileiras da GM e da Ford, onde chegou a participar dos planos da nacionalização dos caminhões dos dois fabricantes. Simultaneamente, a convite do governo federal, contribuiu com a estruturação do GEIA, que veio a ser a força motriz da criação da indústria automobilística brasileira.

Os primeiros produtos da profícua prancheta de João Augusto do Amaral Gurgel

Em 1958 criou em São Paulo (SP) sua primeira empresa – a Moplast Moldagem de Plástico Ltda., onde produziu os primeiros painéis luminosos de acrílico do país, em substituição ao neon. Mas o micróbio do automóvel não demorou a se manifestar e, já a partir de 1960, em associação com Silvano Pozzi (que três anos depois criaria a Silpo), começou a fabricar o Mo-Kart – primeiro kart de competição produzido em série no país. Dotado de motor monocilíndrico de dois tempos de fabricação própria, com 125 cm3 e 6 cv (podendo chegar, quando preparado, a 10 cv e 100 km/h), foi produzido por vários anos, vencendo muitas provas nas mãos de futuros campeões da estatura de Emerson Fittipaldi. Em novembro daquele ano, por ocasião do I Salão do Automóvel, a Moplast lançou o minicarro Gurgel Jr, equipado com motor monocilíndrico Briggs de quatro tempos, 125 cm3 e 6 cv (mais tarde substituído por outro de mesma potência e projeto e produção próprios). Tratava-se de um kart “de passeio” – um chassi Mo-Kart que recebia carroceria aberta de fibra de vidro e suspensão independente nas quatro rodas. O carrinho teve muito sucesso, tendo sido fabricadas mais de 500 unidades, muitas delas exportadas, algumas até para a Alemanha e EUA.

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Stand da Moplast no I Salão do Automóvel, local de lançamento do “kart de passeio” Gurgel Jr.

No II Salão, em 1961, apresentou o Gurgel II, que seria o primeiro de uma longa série de carros brilhantemente concebidos, porém sem continuidade de produção. O Gurgel II tinha carroceria de dois lugares, de plástico reforçado com fibra de vidro (como toda a produção posterior da Moplast e de suas sucessoras), montada sobre um chassi tubular com engenhosa suspensão independente nas quatro rodas. O motor de 130 cm3 (10 cv, refrigerado a ar), localizado na traseira, era acoplado a uma caixa de mudanças de variação constante, composta de polias tronco-cônicas e correias em V. Funcionando quase que como uma transmissão automática, o sistema vinha sendo utilizado na Europa pelos pequenos automóveis holandeses DAF e, muitos anos depois, seria aplicado pela Fiat (que ainda nem sonhava em se instalar no Brasil) e por muitos outros fabricantes em alguns de seus modelos nacionais.

Além destes veículos de lazer, a Moplast lançou no III Salão do Automóvel um transportador industrial para movimentação de cargas em fábricas e aeroportos, anunciando-o como “de criação e fabricação nacionais“. Denominado Mocar, pesando somente 180 kg, tinha capacidade para 400 kg de carga. Era acionado por motor a gasolina de dois tempos, 125 cm3 e 7,5 cv, associado a transmissão com uma marcha à frente e uma a ré, reduzida. Contava com freios somente nas rodas traseiras.

Em 1964 João Augusto se desligou da Moplast e abriu, ainda em São Paulo, a Macan Indústria e Comércio Ltda., revenda Volkswagen que continuaria a fabricar karts, mini-carros infantis e o Mocar. A cada Salão do Automóvel alguma novidade era mostrada ou lançada: em novembro, na sua IV edição, foi a vez do Gurgel Jr II (3 cv, uma marcha à frente e ré, freios nas rodas traseiras), carrinho motorizado para crianças, com 2,10 m de comprimento e estilo inspirado no Ford Mustang. Ao modelo se juntou o mini Karmann-Ghia, carro infantil que reproduzia a carroceria de outro grande sucesso da época, com chassi tubular, motor também de 3 cv, uma marcha à frente e ré, suspensão dianteira por molas helicoidais e freios nas rodas traseiras. Enquanto isto, dava continuidade ao desenvolvimento do Gurgel II, que já dispunha de um segundo protótipo, com carroceria modificada e novos motores de dois cilindros opostos, um refrigerado a água (350 cm3, 12 cv) e outro a ar (400cm3, 18cv – neste caso, o carro era chamado G-400).

1966 seria um ano de virada na história de João Augusto. Mediante acordo com a Volkswagen, preparou para o V Salão do Automóvel o Gurgel 1200, veículo de fibra de vidro sobre plataforma VW, apresentado em quatro versões, três “esportivas”, batizadas de Ipanema, Enseada e Augusta (a mais “luxuosa”), e uma “de trabalho”, denominada Xavante. Esta, dedicada a tarefas mais pesadas e ao transporte de pequenas cargas, seria a inspiração e origem da maioria dos veículos Gurgel das duas décadas seguintes. O Gurgel 1200 utilizava mecânica do Karmann-Ghia, com o tradicional e comprovado motor de quatro cilindros opostos refrigerado a ar de 1.200 cm3 e 36 cv (logo passariam a estar disponíveis motores maiores, com 1.300 e 1.500 cm3). Foi tão grande o interesse despertado pelo carro que João Augusto começou a fabricá-lo na Macan. Desentendimentos entre os sócios com relação ao envolvimento da concessionária na montagem de veículos, entretanto, levaram à sua saída da sociedade. Pouco depois, em 1º de setembro de 1969, fundou a Gurgel Indústria e Comércio de Veículos Ltda., ainda em São Paulo.

O início de fabricação do Ipanema – o modelo escolhido como primeiro produto da Gurgel – se deu em ritmo lento, em torno de quatro carros por mês. Sob a nova marca, o carro – agora simplesmente denominado Gurgel – sofreu algumas alterações externas e internas, dentre elas a inclusão de um santantônio para maior proteção dos passageiros, a mudança do desenho das entradas de ar para o motor, na traseira, a abertura de entradas adicionais nas extremidades dos para-lamas e a troca das lanternas redondas pelas retangulares da Kombi (as redondas, contudo, não tardariam a retornar).

Em 1970 a Gurgel assumiu claramente a vocação utilitária de seu produto, lançando as versões picape e QT (Qualquer Terreno), ambas equipadas com seletraction, um freio traseiro seletivo (com o papel de diferencial autoblocante manual) que, em momentos de dificuldade de tração, imobilizava a roda sem aderência, aplicando toda a potência do motor na outra roda., Extremamente simples, o artifício compensava em muitas situações a ausência de tração total nos carros da marca. A década de 70 se encerraria com o lançamento, no VII Salão, do buggy Bugato, fornecido em kits. Apesar da sua personalidade e estilo original, realçando-o frente à concorrência (vide a frente quadrada com falsa grade, a tampa de acrílico transparente encerrando o motor e os filetes decorativos nas laterais), dele só seriam fabricadas cerca de 20 unidades.

A primeira conquista tecnológica da nova marca foi a adoção, em 1972, da estrutura plasteel, em substituição às plataformas com motor traseiro fornecidas pela Volkswagen. Mais uma das muitas “invenções” de João Augusto, o plasteel consistia numa estrutura tubular em treliça revestida de resina e fibra de vidro, capaz de conferir ao veículo, simultaneamente, flexibilidade à torção, redução de peso e resistência à corrosão. Com esta inovação a Gurgel conseguiria se instalar com solidez num nicho de mercado pouco explorado no país – a dos utilitários para uso sob más condições de terreno, atendido na época por apenas dois modelos de projeto ultrapassado, o Jeep Willys e o Toyota Bandeirante.

O Xavante XT-72, primeiro utilitário Gurgel equipado com o novo chassi, mantinha a carroceria do Gurgel QT, que sofreu pequenas alterações para tornar o carro mais apto ao uso fora-de-estrada: para-choques reforçados, guincho, grade protetora nos faróis, engate para reboque e pás encaixadas nas laterais; o estepe foi deslocado para cima do capô dianteiro. O carro tinha concepção diametralmente oposta à de seus dois concorrentes: carroceria monobloco em fibra com estrutura tubular integrada, motor traseiro, suspensão traseira independente por molas helicoidais, bancos anatômicos e peso reduzido, em lugar de carroceria de aço, chassi em escada, suspensão por feixe de molas e peso e centro de gravidade elevados do Jeep e Toyota. O consumo de combustível do Gurgel era, naturalmente, muito mais reduzido, da mesma forma que o custo de manutenção, já que utilizava a mecânica mais do que conhecida da Volkswagen. Até mesmo o grande diferencial técnico que favoreceria os jipes tradicionais – a tração nas quatro rodas, inexistente no Gurgel –, ficava neutralizada (em condições de uso menos pesadas, por suposto) por sua leveza, pela agilidade da suspensão e pelo uso do selectration. Seu preço era competitivo, cerca de 15% superior ao Jeep, seu concorrente mais direto.

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Gurgel 1200 (tendo João Augusto ao volante) – primeiro sucesso comercial da marca.

Em 1973 foi lançado o XT-73, com suspensão reforçada, maior distância do solo e motor 1600 opcional, nas versões XTR (com portas maiores, porém sem as pás instaladas nas laterais) e picape, com teto rígido e caçamba removíveis de fibra. Os modelos 1974 (XT-74), ano em que a Gurgel completou seu 500º veículo, sofreram apenas retoques nos bancos e no acabamento. Em fevereiro daquele ano foi lançada a nova geração do Xavante, iniciada com o modelo XTC. Apresentava carroceria maior (efetivamente permitindo transportar quatro pessoas), de desenho totalmente novo, com porta malas mais espaçoso, quatro faróis, entradas de ar nas laterais traseiras e canos de escape mais altos (dando-lhe maior desenvoltura no trânsito por estradas de pó e regiões alagadas). O chassi, em plasteel, era também de novo desenho, com pneus maiores, tipo “cidade e campo”; o ângulo da suspensão dianteira foi alterado, aumentando ainda mais o vão livre (a suspensão traseira era semelhante à do XT). O motor era o VW 1600 com ventoinha vertical e um carburador.

O crescimento contínuo das vendas e das exportações exigiu a transferência da produção para instalações maiores. Assim, em 1974 foi inaugurada nova fábrica em Rio Claro (SP), a primeira na história da empresa especialmente construída para abrigar as linhas de moldagem de carrocerias e montagem mecânica. Foi desse período a segunda incursão de João Augusto no campo dos veículos anfíbios (a primeira, já citada, ocorrera ainda quando estudante). Em 1972 preparou um protótipo com seis rodas e uma hélice traseira acionadas por um conjunto motor-caixa VW 1600. Apresentado no VIII Salão do Automóvel, o veículo tinha suspensão independente por molas heliciodais, tração integral, dois sistemas de direção, caixa de redução de desenho próprio e carroceria aberta em plasteel. Batizado Transa, o anfíbio não teve continuidade, assim como também o veículo militar de motor central (“o primeiro a ser fabricado no Brasil”), prometido para o Salão de 1976. (Um terceiro anfíbio, que estaria sendo projetado “a pedido da Marinha”, em 1982, também não veria a luz do dia.)

O jipe Xavante conquista o país

O Xavante conheceu grande número de versões ao longo de sua carreira. Em maio de 1975 foi lançado o X-10, que agregava “cerca de 120 modificações estéticas e mecânicas” ao XTC. Na carroceria, cerca de 15 cm mais curta, as alterações principais foram: colocação do estepe sob a tampa do capô; reposicionamento do guincho, embutido na dianteira; redimensionamento do para-choque, agora em fibra, permitindo maior ângulo de entrada; transferência das entradas de ar mais para a frente; criação de túnel central estrutural; e novo painel. Quanto à mecânica, as modificações mais relevantes se referiam à nova suspensão traseira, que produzia menor cambagem das rodas. O X-10 podia ser equipado com capota rígida, janelas corrediças e porta com chave. Em novembro foi lançada a variante X-12, versão para uso civil do X-12 M, fabricado para as Forças Armadas; 20 cm ainda mais curto do que o X-10, apresentava balanços dianteiro e traseiro mais reduzidos e maior altura do solo, além de ser fornecido com pá, galão sobressalente de combustível com 20 litros, montado externamente, e apenas dois faróis. Com ele chegou a versão X-11, dotada de teto rígido, que duraria menos de um ano.

Em agosto de 1976 foi lançado o X-12 TR, também com teto rígido, janelas de vidro deslizantes e porta de fibra de série, além de nova frente, mais alta, com faróis embutidos e maior capacidade no porta-malas. No X Salão do Automóvel, no final daquele ano, mais duas novidades sobre o X-12: sua primeira versão a álcool, para a qual foi elevada a taxa de compressão do motor VW 1300 de 6,8:1 para 10:1 e alterados carburador e coletor de admissão; e a versão “jovem” – o Gurgel Blue Jeans, com capota, bancos e portas em tecido jeans e tala larga nas rodas traseiras. Com este modelo, a Gurgel introduziu novo prazo de garantia para seu monobloco fibra-plasteel: 100.000 km.

O Salão ainda mostrou o X-20, primeiro utilitário com cabine avançada da marca, com capacidade para 1/2 t de carga, podendo ser adaptado para o  transporte de passageiros ou uso misto. Tomando por base versão anterior desenvolvida para as Forças Armadas, acompanhando a concepção básica do X-12, porém com motor 1600, o veículo apresentava grande vão livre (360 mm) e excelentes ângulos de ataque e saída (respectivamente 65 e 450), obtidos graças ao reduzidíssimo balanço dianteiro  e à elevada distância para o solo.

Em mais uma demonstração de sua ilimitada capacidade de imaginação (que, ao longo da vida, tantas vezes se mostraria totalmente apartada da realidade), Gurgel iniciou o desenvolvimento de um veículo com dois motores, que batizou Garoupa, capaz de atravessar longas extensões de deserto, destinado à exportação para a África. O projeto não foi concluído.

Em 1978 surgiu mais uma variante do X-12, o X-12 E, totalmente equipado e se propondo mais econômico pela nova regulagem do motor VW 1600. Também a carroceria passou por pequenas alterações: novas lanternas traseiras (do Chevette); novo mecanismo de abertura da capota, que também passava a usar tecido diferente; tampa do motor modificada; e, pela primeira vez, utilização de cintos de segurança de três pontos.

Em 1979 a carroceria do X-12 mudou mais uma vez, mantendo a mesma concepção técnica, porém dedicando maior atenção ao conforto, espaço disponível e acabamento interno. O carro ficou levemente mais largo e mais baixo e ganhou portas maiores e, opcionalmente, rodas de cores claras e desenho moderno. Suas linhas e proporções ficaram mais equilibrados, com destaque para a frente bem definida com faróis encaixados numa base quadrada, já agora sem grade de proteção; também o painel foi redesenhado e o galão sobressalente deslocado da esquerda para a direita. O novo X-12 foi lançado no XI Salão, acompanhado da picape X-15, para uso civil (derivada direta do X-20), e do GTA (Gran Turismo Articulado), inesperado protótipo de carro urbano com três lugares, ao qual podia ser acoplado (por sistema do tipo 5ª roda) um reboque com 1 mde capacidade, destacável quando desnecessário.

A Gurgel encerraria aquele ano, no qual comemorava seu 10º aniversário, com sólida reputação, líder de mercado no segmento fora-de-estrada, vendas crescentes, exportações em alta (correspondendo a mais de 1.200 carros e já ultrapassando ¼ do total fabricado), presença na frota de diversas forças armadas estrangeiras (1.280 unidades foram vendidas para Angola em 1976) e produção diária de 10 unidades.

Em 1980 (ano em que fabricou seu 8.000º carro e atingiu a produção anual recorde de 1.872 veículos) lançou o X-12 “modelo 81”, com nova suspensão dianteira, freios a disco na frente, tela de proteção nas entradas de ar, novo formato e diferente fixação dos bancos dianteiros e melhor iluminação e acabamento internos. A picape X-15 deu origem a uma nova família de utilitários, a linha G-15, talvez os veículos esteticamente mais toscos até hoje produzidos no país. Com capacidade para 700 kg (logo a seguir 1.050 kg), seis variantes eram disponíveis, todas com opção de guincho manual na dianteira: picape, furgão e cabine-dupla e van de uso misto com duas ou quatro portas. Por encomenda podiam ser preparadas versões especiais, tais como ambulância, bombeiros, polícia, transporte de valores e motor-home. Dois anos depois o G-15 foi substituído pelo G-800, de estilo menos descuidado, porém com as mesmas deficiências ergonômicas do modelo anterior.

No XII Salão, em novembro de 1981, novas alterações foram introduzidas: o capô foi elevado e perdeu grande parte do ressalto onde se escondia o pneu; a dianteira ganhou uma grade falsa na cor preta, recobrindo o vão do guincho, que passou a ser opcional; o painel foi modificado e os revestimentos internos melhorados. O modelo de teto rígido (TR) recebeu uma armação metálica sobre o compartimento do motor, chamado “porta-malas” pela empresa. A linha G-15 recebeu quebra-ventos. Em 1983, mais alterações: a grade falsa (ainda preta) passou a englobar os faróis e o estepe foi transferido para a traseira, montado por trás de um braço articulado (constituído pela parte central do para-choque), para permitir acesso ao motor; a versão TR ganhou um alçapão para melhorar a ventilação interna. Para o XIII Salão do Automóvel, em 1984, os para-choques, lanternas traseiras e a grade dianteira tiveram o desenho modificado (a grade ganhou padrão xadrez e a mesma cor da carroceria); o motor recebeu ignição eletrônica e, para melhorar o comportamento na estrada, o diferencial teve a relação final reduzida.

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Produto mais duradouro da Gurgel, no final da década de 80 o jipe Xavante passou a chamar-se Tocantins; a imagem reproduz um folder de propaganda do veículo.

A partir de então, envolvida que a Gurgel estaria com o desenvolvimento do seu automóvel pequeno, por muito tempo a linha X-12 permaneceria sem modificações, e apenas no final da década, em 1988, passaria por outra mudança na dianteira, quando recebeu nova grade e faróis quadrados. (Àquela altura, também o sistema de fixação do estepe já havia mudado, passando a ter uma estrutura tubular independente do para-choque, com articulação afixada diretamente na estrutura do carro.) Ao mesmo tempo a Gurgel disponibilizou para o mercado interno o modelo Caribe, “para praia”, com revestimentos internos de cores claras e capota listrada, versão já exportada em quantidade, desde 1982, para cidades turísticas da América Central. Na oportunidade a Gurgel decidiu dar novo nome ao X-12, a partir daí chamado Tocantins.

O X-12 foi o produto de maior sucesso da Gurgel e aquele que teve vida mais longa, sendo produzido por quase 20 anos, desde o pioneiro modelo XT até o fechamento da fábrica, em 1995. Apesar da ausência de tração nas quatro rodas, seu comportamento fora de estrada era excepcional: tinha “genial rusticidade hiperfuncional”, segundo as palavras do jornalista José Luiz Vieira na revista Motor3 (01/81). A despeito de seu mau acabamento crônico, foi para toda uma geração de brasileiros o veículo “para todo terreno” por excelência.

A aventura do carro elétrico

Ao longo dessa história, entretanto, a Gurgel (e João Augusto, em especial), não cessavam de buscar novos caminhos (e, muitas vezes, também novos problemas). Assim, embora a empresa já fornecesse havia muito tempo toda a sua linha equipada com motores a gasolina e álcool, no final dos anos 70 João Augusto deu início a uma de suas lutas mais polêmicas, tornando-se um cruzado contra o Pró-Álcool. Como argumento principal, num enfoque algo tecnicista, considerava que a menor eficiência energética do álcool em relação à gasolina, além de subsídios, exigiria cada vez maiores extensões de terras produtivas para a cultura da cana-de-açúcar, que deveriam ser utilizadas na produção de alimentos, desqualificando o caráter estratégico e de interesse nacional conferido ao Programa pelo governo federal. Era sua a “missão corajosa de implodir o Proálcool”, como escreveu em 15 de maio de 1990 ao então Presidente Fernando Collor.

Paralelamente a essa campanha, e num rasgo característico de sua personalidade complexa, João Augusto retomava o tema do veículo elétrico, já ensaiado em 1974, quando desenvolveu o protótipo do primeiro automóvel elétrico nacional – o Itaipu, mini-carro a bateria para uso urbano, com dois lugares. O sonho do carro elétrico sempre acompanhou João Augusto. Suas idéias concretas (e extremamente inovadoras) sobre o tema foram trazidas a público no ano anterior – ainda antes da Crise do Petróleo – com a apresentação simultânea do protótipo (não operacional) T.U. e da logística para sua utilização como solução para o transporte individual urbano. O T.U.  tinha carroceria tipo furgão de carga, de linhas retas muito equilibradas e agradáveis, mas ainda não dispunha de motor (o primeiro protótipo operacional seria o Itaipu).

A logística para seu uso urbano, ao contrário, já se encontrava suficiente (e brilhantemente) elaborada e discutida: com o apoio da Prefeitura de Rio Claro, onde se localizava sua fábrica, a Gurgel teria toda uma cidade como campo de provas para o novo carro, já que a Câmara de Vereadores concedera à empresa o uso exclusivo, por cinco anos, de determinado número de pontos de estacionamento e recarga de baterias ao longo da cidade. A Gurgel escolheu 14 pontos, cobrindo toda a área adensada de Rio Claro; a Prefeitura, por seu lado, pretendia pleitear à concessionária estadual de eletricidade CESP o fornecimento gratuito de energia por cinco anos; por ser veículo de uso urbano, também esperava-se obter a dispensa do pagamento da TRU. Os planos da Gurgel incluíam a criação de uma versão táxi, a utilização de freio regenerativo (auxiliando a recarga da bateria a cada frenagen) e a disponibilização de kits sobressalentes de baterias para compensar o tempo de imobilização do veículo durante a recarga, num esquema semelhante ao da “troca” de botijões de gás de cozinha.

O Itaipu foi apresentado no IX Salão do Automóvel, ainda como protótipo. Seu formato já se distanciava muito do T.U.: tratava-se agora de um mini-automóvel para dois passageiros, com apenas 2,65 m de comprimento, embora mantendo o perfil em cunha e a grande inclinação do para-brisa dianteiro do T.U.. Apresentado com carroceria aberta ou fechada, tinha quatro faróis quadrados e rodas de 13 polegadas. A tecnologia da carroceria e do chassi seguia a tradição da Gurgel (fibra e plasteel); a suspensão dianteira era independente (McPherson) e a traseira por barras de torção, com freios a tambor nas quatro rodas. O protótipo tinha motor elétrico longitudinal central de 3,2 kW (4,2 cv) e baterias importados (12 unidades, sob o assento e na traseira); o sistema de controle de velocidade era provisório. Pesava cerca de 500 kg e sua autonomia podia chegar a 60 km; o tempo de recarga, no entanto, ainda era muito elevado (dez horas para um conjunto de baterias totalmente descarregadas).

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Itaipu, o primeiro automóvel elétrico totalmente operacional projetado e construído no Brasil.

A expectativa (irrealista) da João Augusto era de que, quando produzido em série, o Itaipu custasse metade do que um VW 1300 – um dos mais baratos carros brasileiros de então – embora se soubesse que, devido ao custo alto dos motores elétricos de tração, dos controles eletrônicos de velocidade e de baterias mais leves e eficientes, carros elétricos sempre custavam mais do que os equivalentes a gasolina. A realidade viria a se revelar pouco tempo depois, com o lançamento dos primeiros utilitários elétricos da marca, que custariam o dobro da versão a gasolina. Assim, o elevado custo inicial do carro elétrico deixava de compensar sua longa vida útil (30 anos) e o custo operacional efetivamente muito mais reduzido (cerca de 80%) do que os concorrentes a gasolina. Este enfoque equivocado levou a que o sucesso do Itaipu dependesse da concessão de benefícios fiscais, isenção de taxas de importação e criação de políticas nacionais, que nunca chegaram.

Em 1977 João Augusto mudou provisoriamente de foco com relação à forma de aplicação do veículo elétrico, desenvolvendo um protótipo de picape média para uso comercial, que apresentava potencial de mercado muito maior do que um mini-carro urbano. Utilizando a carroceria da picape X-20, recém-lançada no X Salão, construiu um protótipo com 1,5 t de capacidade de carga e autonomia de 90 km. Aperfeiçoado nos anos seguintes, o projeto seria dado por concluído em junho de 1980, quando foi anunciado “para breve” o lançamento do Itaipu E-400 – furgão elétrico para uso de concessionárias estatais de serviço público (telefone, gás, eletricidade) e para a distribuição de cargas leves. O carro tinha 3,82 m de comprimento, 1.470 kg e carga útil de 400 kg; à exceção do motor, todos os órgãos mecânicos eram Volkswagen – aqueles normalmente utilizados pela Gurgel -, inclusive a caixa de marchas, equipamento não usual num veículo elétrico (para reduzir o preço do carro, João Augusto optou por não utilizar variadores contínuos eletrônicos de velocidade e sim um câmbio convencional, da Kombi). A energia era fornecida por oito baterias tipo chumbo-ácido (vida útil de 800 ciclos, ou cerca de quatro anos; tempo de recarga reduzido para 8 horas), assegurando autonomia entre 80 e 100 km e 70 km/h de velocidade máxima. O motor elétrico já era de fabricação nacional, da Villares. Previa-se a produção inicial de 100 unidades mensais do carro, que também disporia de modelos picape, cabine dupla e van, além de uma versão mais pesada (o furgão E-2000, para duas toneladas de carga) e um microônibus.

O início da carreira do E-400 pareceu auspicioso. Já em fevereiro de 1981 a Gurgel venceu concorrência para a venda de cinco carros elétricos para a Telebrás, que buscava alternativas para a redução dos gastos de combustível em sua frota; pouco depois, também a Telesp e a Souza Cruz declararam interesse no veículo. Tratava-se ainda, porém, de um mercado totalmente desconhecido, sendo universal a percepção das limitações técnicas e do alto custo dos veículos a bateria. Testado pela Telesp, por exemplo, a autonomia foi 25% menor do que a anunciada (apenas 60 km por carga de bateria); o custo operacional se revelou cerca de 40% mais baixo do que do veículo equivalente a álcool, embora tal economia ainda não compensasse o preço mais elevado do carro elétrico.

Apesar disto, em mais um lance temerário, a Gurgel inaugurou em junho de 1981, em Rio Claro, uma unidade exclusiva para a fabricação em série do carro elétrico, num investimento de 5 milhões de dólares (a “1ª fábrica de veículos elétricos da América do Sul”, conforme orgulhosamente divulgou a empresa). Na oportunidade foi anunciado o projeto do E-180, para dois passageiros e 30 kg de carga, com “produção de até mil unidades por mês a partir de 1982“.  Registre-se que, segundo declaração do próprio João Augusto um ano antes – no momento mesmo em que dava início à construção da nova fábrica –, ainda seria necessário “realizar um teste de mercado com o carro elétrico, para saber qual a procura”. Os planos de João Augusto para instalar uma linha de fabricação de carros elétricos já vinham de longe, por sinal: ainda em 1974, mal havia sido apresentado o ainda pouco testado primeiro protótipo do Itaipu, era intenção sua construir instalações específicas para a produção na então nova fábrica de Rio Claro; desaconselhado, pelo desconhecimento do mercado e insuficiente desenvolvimento técnico, adiou seus planos. Em maio de 1983, após mais de dois anos do surgimento do E-400, quando apenas 100 exemplares haviam sido vendidos, o modelo foi substituído pelo Itaipu E-500, com baterias melhoradas, permitindo maior autonomia (120 km) e aumento na capacidade de carga (de 400 para 500 kg). Na oportunidade, redimensionando suas metas, João Augusto informou ter a expectativa de colocar no mercado de 200 a 300 carros elétricos por ano.

Em paralelo, na sua rotina de enfrentar desafios, a Gurgel desenvolvia uma bateria cilíndrica chumbo-ácido pressurizada, de nova concepção (chamada quadripolar ou tetrapolar), mais leve e com maior capacidade de carga, com a qual pretendia aumentar em 50% a autonomia dos veículos, reduzir o tempo de recarga em mais de 90% e aumentar a vida útil em 50%. Da mesma forma, em mais uma iniciativa pioneira, inicia estudos para a criação de um veículo híbrido a álcool, então denominado Eletrocom. Informa estar trabalhando também no projeto de um jipe elétrico para o uso em regiões isoladas (como o Pantanal e Fernando de Noronha, segundo o próprio engenheiro), cujas baterias seriam recarregadas através de energia eólica…

Em fevereiro de 1984 a empresa apresentou o Itaipu E-250, com carroceria muito semelhante à do XEF (veja a seguir) e início de produção previsto para o ano seguinte. Numa volta parcial à temática do transporte individual, a Gurgel projetou o E-250 como uma picape leve para três pessoas e aspecto de automóvel de passageiros; quando do seu lançamento, o carro usaria a nova bateria tetrapolar. O desenvolvimento da bateria foi dado por concluído apenas em 1986; os planos da Gurgel eram de produzi-las em sua própria fábrica, o que acarretava um novo problema – mais recursos para investimento, maior endividamento, abertura de nova frente de negócios –, num momento em que a empresa já avançava, firmemente, para outros rumos. Assim, nem a bateria nem o E-250 entraram em produção. Em 1987 a fabricação dos carros elétricos já havia sido descontinuada: tendo sido fornecidas pouco mais de 100 unidades (apenas uma adquirida por pessoa física), este se constituiu no primeiro grande revés na trajetória da Gurgel.

Investindo em utilitários para o trabalho

Fez parte da história da empresa a proposição de soluções técnicas ousadas, mas nem sempre econômica ou comercialmente viáveis ou bem conduzidas. Para isto contribuía a personalidade extremamente criativa, porém igualmente centralizadora de João Augusto, que sempre concentrou em suas mãos todas as decisões da firma, acumulando três das quatro Diretorias da empresa (Comercial, Industrial e de Engenharia), além da Presidência. Assim, a aleatória política de produtos da Gurgel tanto poderia conduzir ao lançamento de veículos de sucesso como a grandes e desgastantes fracassos: exemplos disto foram as três diferentes linhas de desenvolvimento conduzidas ao correr da década de 80, em paralelo com a produção dos carros elétricos e dos bem sucedidos jipes X-15.

O primeiro desses projetos tinha como objetivo explorar o mercado de veículos especiais, de pouco interesse dos grandes fabricantes – a já citada linha de utilitários de carga X-20, a gasolina, concebida a partir de um veículo projetado para as Forças Armadas, para as quais foram vendidas 40 unidades. Lançada no X Salão do Automóvel, em 1976, ainda em versão não definitiva, valia-se dos elementos mecânicos e estruturais usuais dos produtos Gurgel: carroceria em fibra e plasteel, motor traseiro VW 1600 refrigerado a ar (60 cv), caixa VW de quatro marchas, suspensão independente e freios a tambor nas quatro rodas. Com peso líquido de 980 kg, sua capacidade de carga era de meia tonelada; tinha 3,63 m de comprimento. Inicialmente apresentado na versão picape, com a cabine montada sobre o eixo dianteiro, o X-20, além da fraca ergonomia (acessibilidade e visibilidade precárias), tinha um estilo algo “brutal”, que seria agravado nos modelos posteriores.

A linha de utilitários foi revista e ampliada no final de 1979. Tomando por base a picape X-15 militarizada, foi lançada a G-15, com capacidade para 700 kg, em diversas versões e carrocerias especiais, com ou sem caçamba. Caracterizado por seus para-brisas extremamente inclinados, reduzida área de janelas e elevadíssima linha da cintura, resultando em péssima visibilidade, este modelo exacerbou o desprezo da Gurgel pela estética e ergonomia: com ele a empresa produziu um dos piores exemplos de mau desenho na história da nossa indústria automobilística. Em 1980 o G-15 ganhou versão a álcool, recebendo dois tanques de combustível, o que lhe permitia autonomia de até 1.200 km. No ano seguinte apareceu o G-15 L, 30 cm mais longo e com capacidade de carga aumentada para 1.050 kg (para igual peso líquido); o nome Gurgel vinha pintado com grande destaque no para-choque dianteiro.

Em resposta ao mau desempenho de vendas do G-15, em 1982 foi lançado o G-800, com capacidade de carga de 1.100 kg e carroceria de linhas curvas mais agradáveis (a mesma do elétrico E-400), porém com as mesmas deficiências de acesso e visibilidade do modelo anterior; o espaço interno traseiro, no entanto, era excepcionalmente grande, em especial na versão cabine-dupla. A mecânica permanecia a mesma, com a adição de freios a disco nas rodas da frente e servo freio, porém sem o dispositivo selectration. O G-800 também se apresentava nas versões picape, furgão, van, executivo, táxi e escolar, todos os modelos recebendo grandes alçapões basculantes no teto para garantir ventilação interna para os passageiros; também foram instalados cintos de três pontos nos bancos dianteiros. O estepe estava colocado sob o piso, com acesso mediante portinhola situada na lateral esquerda. As versões van e cabine dupla contavam com grande vidro fixo na lateral esquerda, que descia bem abaixo da linha da cintura, em claro contraste com a pequena janela do motorista. A picape cabine-dupla podia dispor de tampa de fibra de vidro protegendo a caçamba, transformando-a em porta-malas. Nos modelos táxi e executivo o banco do motorista era separado do compartimento traseiro por uma divisória de vidro, parcialmente móvel por meio de comando elétrico. Havia uma versão sem carroceria, fornecida como mera plataforma para a construção de veículos especiais.

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João Augusto Gurgel diante de parte da linha de veículos 1981 de sua empresa, onde se destacam quatro utilitários: à esquerda, o elétrico E-400; na extrema direita, dois G-800, ladeados por uma picape X-20.

Em 1984, no XIII Salão do Automóvel, o carro recebeu alguns retoques estéticos, os mais visíveis dos quais a nova grade dianteira, na cor da carroceria, os para-choques convencionais, os faróis retangulares quádruplos e a caçamba, que teve as laterais alinhadas com a cabine e recebeu a marca Gurgel em relevo na tampa traseira. Também de 1984 foram os protótipos Cruiser e MC-1000. O Cruiser era uma van G-800 com quase cinco metros de comprimento, fruto do aumento da distância entre eixos em 90 cm, cujo espaço sobre o motor era isolado do habitáculo por uma janela fixa, criando um compartimento isolado para as bagagens; apesar do peso líquido 150 kg superior ao G-800, o Cruiser estava equipado com o mesmo motor VW 1600 pouco potente. O MC-1000, inspirado nas vans coreanas que invadiriam o mercado na década seguinte, foi construído a partir do jipe Carajás (veja adiante) – também apresentado no XIII Salão, em conjunto com o MC-1000. Tinha 4,78 m de comprimento, motor na posição central (a gasolina, álcool ou diesel) e transmissão traseira pelo sistema TTS, novidade da Gurgel que estava sendo lançada, na mesma oportunidade, como elemento mecânico do Carajás. Apesar da carência de produtos semelhantes no mercado, estas duas vans não chegaram a entrar em produção.

Histórias de sucesso e frustração: o jipe Carajás e o carro urbano de luxo XEF

Na segunda metade da década de 80 a Gurgel viveu duas histórias paralelas no tempo, mas opostas com relação ao sucesso alcançado. Mal sucedida foi a segunda tentativa da Gurgel (depois do Itaipu) de produzir um carro para uso urbano; bem sucedido foi o lançamento de novo modelo de jipe, maior e mais sofisticado do que o X-12 – área que a empresa dominava e onde sua competência era amplamente reconhecida.

A frustração aconteceu com o XEF, apresentado no XII Salão do Automóvel, em 1981. A proposta era original e despertou simpatia do público e da imprensa: um carrinho urbano (três lugares e apenas 3,12 m de comprimento – 60 cm mais curto do que um Fusca) com bom desempenho (54 cv versus 680 kg, fornecendo ótima relação peso-potência) e conforto (bitola traseira alargada, resultando em largura da carroceria maior do que a usual). Para compensar o pequeno espaço disponível para bagagens (atrás do banco, compartilhado com o estepe), a Gurgel lembrou a possibilidade de acoplar um reboque-bagageiro, conforme o conceito GTA apresentado seis anos antes em outra edição do Salão. A mecânica do XEF era a usual: motor VW refrigerado a ar na traseira, suspensão independente (barras de torção à frente e molas helicoidais atrás), caixa com quatro marchas, freios dianteiros a disco. A princípio, o XEF seria produzido em duas versões: a primeira, com portas convencionais e dois bancos – um, regulável, para o motorista, e outro, fixo, para dois passageiros (o XEF acomodava três passageiros lado a lado); a segunda versão, com apenas dois assentos individuais, teria portas “asa de gaivota”, abrindo para o alto.

O XEF só foi oficialmente lançado dois anos depois, em dezembro de 1983, com a carroceria bastante modificada: falsa grade mais saliente, alteração na linha dos para-lamas, para-brisas (do VW Brasília) iguais atrás e na frente, adição de pequena janela fixa nas colunas traseiras para melhorar a visibilidade (houve versão intermediária onde a janela se resumia a uma vigia redonda, de estilo naval), portas de desenho tradicional, transferência do estepe para a mala, novo painel.

Os produtos Gurgel sempre ressentiram da ausência da contribuição de designers ou de equipes de estilo de qualidade no desenho dos veículos. Tal carência ficou mais acentuada no caso do XEF, dado o papel que dele se esperava no mercado – um automóvel exclusivo e de alto preço, concorrendo “na faixa dos carros esportivos e fora-de-série”. Na realidade, era apenas um três-volumes ingenuamente “inspirado no Mercedes”, tentando conferir ares de veículo de luxo que o carro jamais teria. Não apenas suas linhas eram canhestras, desproporcionais, como ergonomia,  acabamentos e tratamento dos detalhes muito descuidados. Não havia sistema de ventilação interna e era péssima a posição de dirigir. O acesso ao motor era dificultado pela injustificada ausência de uma tampa de motor de dimensões normais, aproveitando a área disponível na traseira. A despeito destas falhas, todas elas apontadas pela imprensa especializada, quase nada foi alterado no carro: a mais visível mudança foi o novo desenho da grade falsa, apresentado no XIII Salão, claramente calcado nos modelos esportivos da Mercedes-Benz; no interior, apenas passou a ser oferecida opção de banco inteiriço. Como atrativo, a garantia do veículo foi aumentada para 30.000 km (a carroceria já era garantida por 100 mil km).

João Augusto definira o XEF como um “carro urbano de luxo”; seu público alvo seria “o executivo de 40 anos de idade, com outros carros na família e que usa o automóvel para mostrar status, as ”donas-de-casa e executivos de alto poder aquisitivo”. Esta a razão de seu fracasso: o preço do carro foi fixado em absurdos Cr$ 9 milhões – equivalente a mais de US$ 15.000, 10% a mais do que custava o VW Passat GTS Pointer, um dos melhores e mais caros automóveis brasileiros de série da época. A Gurgel previa a produção de cem unidades mensais do XEF. Evidentemente faltou demanda e a produção foi encerrada em 1986, após a fabricação de pouco mais de uma centena de carros. O lançamento do XEF foi um equívoco.

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Extremamente caro, o XEF vendeu pouco mais de cem unidades.

Em contraponto, umainsucesso ocorreu com o projetodores de mento e sustentaç história de sucesso se iniciou no Salão de 1984, com o lançamento do Carajás. Inicialmente chamado X-20, o Carajás acumulou diversas primazias no “currículo” da empresa: foi o primeiro jipe pesado da marca (1.230 kg), o primeiro de seus carros com motor dianteiro, o primeiro refrigerado a água (1.8 a gasolina ou álcool do Santana) e o primeiro diesel (1.6 do Passat). Também introduzia outra inovação técnica, o sistema Tork Tube SystemTTS, com câmbio e transmissão montados na traseira, separados do motor e da embreagem. Com 750 kg de capacidade de carga, o jipe tinha suspensão independente nas quatro rodas (barras de torção à frente, molas helicoidais atrás), freios dianteiros a disco e selectration. A carroceria tinha duas portas, meia-capota rígida ou de lona e um engenhoso sistema de aeração interna, com a coleta de ar e os cinco bocais de ventilação posicionados no teto. Naturalmente, era construído em fibra e plasteel.

O mais confortável Gurgel até então produzido, o Carajás teve muito boa aceitação, impactando positivamente sobre a produção total da empresa, que em 1985 cresceu 40% sobre o ano anterior (contra 10% do setor), respondendo por 81% do mercado brasileiro de jipes. Apesar dos seus muitos predicados, os testes das revistas especializadas também apontaram descuidos injustificados por parte de um fabricante já tão experiente. São exemplos: inexistência de tranca de direção; abertura externa do capô; acesso externo ao estepe; jogo de cinco chaves, de origens diversas, para as várias fechaduras e trincos do carro; regulagem insuficiente do banco do motorista; péssima visibilidade.

No entanto, foram poucas as alterações introduzidas ao longo da sua existência: em 1986 recebeu um defletor sobre o para-brisa traseiro, para mantê-lo limpo quando em movimento; em 1987, ganhou a variante Vip, com rodas cromadas, vidros verdes, pintura metálica (inclusive grade e bagageiro), calota decorativa no estepe, trava elétrica do capô e melhores acabamentos no interior; também recebeu nova geometria na suspensão traseira. Em 1988 foi colocado à venda o modelo quatro-portas, com maior balanço traseiro e teto elevado, anteriormente fornecido apenas para a polícia. Naquela oportunidade foi alterado o mecanismo de fechamento do capô, reposicionados seus amortecedores de sustentação e substituídas as duas tampas de acesso à mala por uma porta inteiriça, abrindo para o alto. No final do ano foi preparada uma versão ambulância, com chassi mais longo. O Carajás foi produzido até 1994; um modelo intermediário, planejado para se inserir entre o Carajás e o X-12 (ora chamado X-13, ora Tocantins) não chegou a ser produzido.

O sonho do carro urbano permanece vivo

Novo capítulo da história da Gurgel – que será, ao mesmo tempo, o germe do seu fim – teve início em 1985 (na mesma conturbada década de 80), com o pedido de financiamento à Finep para o desenvolvimento e produção da “cabeça de série” do carro urbano Bastião. A aventura do Bastião (que no futuro viria a ser batizado de BR-800) começou muitos anos antes. Já em junho de 1981 João Augusto anunciava estar desenvolvendo um carro “intermediário entre a motocicleta e o automóvel” (Tião seria o seu nome), com 2,5 m de comprimento, 230 kg de peso e consumo de 32 km/l: seria “o carro do trabalhador brasileiro”. Em janeiro do ano seguinte prometeu um carro com motor “revolucionário” (bicilíndrico, 800 cm3, de fabricação própria) e “inteiramente despido de acessórios dispensáveis, para ser fabricado num sistema de produção diferente dos atualmente utilizados”, cujo preço se situaria “muito próximo de uma motocicleta de 125 cc”. Em novembro de 1983 foi revelado que o carrinho (que então já se chamava Bastião, pesava 270 kg e era 70 cm mais longo) teria um motor de um cilindro e 400 cm3, rodas finas (como as motos) e custaria “cerca da metade” de um Fusca.

Em 1985 os planos da Gurgel já incluíam, além de um carrinho conversível para dois passageiros, versões para quatro pessoas, picape e furgão, com motores a gasolina e a álcool e diversos níveis de acabamento. João Augusto aproveitou aquele ano para realizar articulações políticas e negociações com grandes fabricantes estrangeiros para a transferência de tecnologia de construção de motores pequenos. Ao Governo Federal foi apresentado pleito de reserva de mercado, por dez anos, para carros com cilindrada inferior a 650 cm3. Foi solicitada a diversos governadores de Estado a cessão de terrenos onde pudessem ser instaladas linhas de montagem do Bastião (pois também inovadora era a estratégia pretendida para fabricação do carro: realizar a pré-montagem dos conjuntos em uma unidade fabril no Nordeste e concluir a montagem em linhas de fabricação descentralizadas, nas várias regiões do país, em empresas de propriedade local). Para ambos os pleitos, entretanto, não houve resposta positiva. Discussões com a Citroën resultaram na assinatura de uma Carta de Intenções mediante a qual a empresa francesa se dispunha a discutir no futuro um Contrato de Transferência de know-how para a fabricação do motor do 2CV no Brasil.

Em entrevista coletiva concedida em meados do ano, João Augusto surpreenderia, informando que a carroceria do Bastião (que agora passava a ser o nome apenas da versão mais espartana) seria projetada por um carrozzieri italiano de renome (o que, ao que parece, nunca foi seriamente cogitado). E sua cabeça de eterno inventor não parava de criar. Naquela mesma entrevista lançou duas idéias revolucionárias: em primeiro lugar, avisava que o carrinho seria fornecido com um detalhado manual, suficientemente auto-explicativo de modo a permitir que sua manutenção fosse feita em casa, dispensando assim uma extensa rede de oficinas autorizadas. (Ainda nesta linha de pensamento, poucos anos depois João Augusto lançou a proposta de venda de peças de reposição pela rede de postos de serviço da Petrobrás.) A segunda idéia – quase uma antevisão do processo que seria implementado pela Volkswagen Caminhões mais de uma década depois, sob o nome Consórcio Modular –, dizia respeito ao envolvimento direto dos fabricantes de autopeças e dos revendedores de veículos no empreendimento, como forma de reduzir o investimento total da Gurgel no novo negócio. Segundo a proposta, os fornecedores de componentes participariam do capital da fábrica-mãe, integralizando-o através dos fornecimentos necessários, e as revendas participariam nas linhas de montagem descentralizadas, das quais poderiam ser proprietárias.

A Gurgel abriu seu capital em dezembro, como forma de captar parte dos recursos para a industrialização do novo carro. Nenhuma das idéias anteriores teve repercussão. Aliás, há que se reconhecer que dificilmente uma estrutura administrativa semi-amadora, como a da Gurgel, poderia dar conta, ao mesmo tempo, de estruturar uma fábrica de automóveis populares, tratar do desenvolvimento tecnológico de motores e lançar produtos tão diversos como jipes, carros elétricos e automóveis de luxo. Além disto, sempre haveria algum novo elemento perturbador sendo lançado no ar, pois os rumos do projeto não cessavam de mudar – e a permanente alteração de foco era ameaça sempre presente nas ações de João Augusto.

Assim, definido o escopo do projeto, tudo mudava de novo, e no final de 1985 a linha Bastião já era composta por treze versões, dez com motor de projeto próprio (de um cilindro e 16 cv) e três outras (passageiros, picape e furgão) fabricadas em colaboração com a Citroën, utilizando seu motor de dois cilindros e 600 cm3. Em 1986, quando foram mostrados os primeiros traços do que seria o novo carro, este já se chamava Cena – Carro Econômico Nacional. Nessa altura a cooperação com a Citroën já havia sido abandonada: julgando inviável a fabricação do motor do 2CV no país, pois a indústria brasileira não produzia nenhum dos seus componentes (sic), João Augusto decidiu fabricar apenas um motor de projeto próprio – já agora com dois cilindros opostos e 650 cm3, de alumínio, fundido na própria Gurgel –, utilizando “o máximo possível de componentes existentes no mercado”. O motor teria sistema de arrefecimento misto: a água, circulando em camisas revestidas de borracha para a refrigeração dos cilindros (idéia a seguir afastada), e a ar, nas rotações mais elevadas, para arrefecer os cabeçotes. O alternador não era um componente independente, mas uma extensão do bloco, acoplado à ponta do virabrequim (esta simplificação se mostrou tecnicamente inviável e foi abandonada anos depois, após muitas reclamações dos usuários).

O estilo da carroceria estava sendo discutido na própria fábrica, e não mais na Itália, e a tendência era que se optasse por um monovolume, então conhecido como space-car – em outra antevisão da Gurgel, pois este seria o estilo da moda na virada do século, muitos anos depois. O Cena seria um automóvel para quatro passageiros, com tração traseira e carroceria moldada em plástico ABS pigmentado na cor do carro, dispensando pintura. O empresário contava como certo que as empresas estatais adquiririam toda a produção do primeiro ano, correspondente à fase de testes do veículo, como incentivo à sua iniciativa pioneira… Como sempre, idéias brilhantes e miragens, visão de futuro e ilusões, tudo convivia a um só tempo em sua mente fervilhante.

Em julho de 1987 foi apresentado o primeiro protótipo completo do Cena, já agora chamado Gurgel 280-M (o carro teria sido rebatizado para evitar confusões com o sobrenome Senna). Tinha carroceria para quatro lugares e capota plástica removível em duas partes, mantendo-se montada a estrutura de fixação dos vidros laterais. O motor de quatro tempos e dois cilindros opostos tinha 792 cm3 e 32 cv, um carburador e ignição eletrônica (mais um pioneirismo da Gurgel); o consumo de combustível ficava em 25 km/l; também estaria disponível um motor menor (650 cm3 e 26 cv), porém as duas versões só seriam fornecidas a gasolina. O câmbio não era sincronizado, mas de engate rápido, como nas motocicletas. A suspensão dianteira (regulável manualmente em altura) tinha molas helicoidais e discos de fricção de amianto, em lugar de amortecedores, e a traseira, feixes de molas e amortecedores; os freios eram a disco na frente e a tambor atrás. Seu chassis tubular pesava apenas 42 kg. Assim, com 450 kg e 3,15 m de comprimento, meio metro mais curto do que o Fiat Uno, foi o menor carro brasileiro da época. O carro seria oferecido em quatro versões: 265-S (Sedan, 650 cm3), 280-M (Múltiplo, 800 cm3), F e C (furgão e Caribe, a mais equipada).

A vida conturbada do pequeno Gurgel

O 280-M foi apresentado ao público em outubro, na V Brasil Transpo (onde foi exposta uma simpática versão com capota de lona listrada em cores vivas), mas só foi oficialmente lançado no Salão do Automóvel de 1988, já sob a denominação definitiva, BR-800 – a quinta, desde que foi iniciado o projeto. Também foram agregadas à linha uma picape com 350 kg de capacidade de carga e um conversível, com meia-capota de lona e meio-teto de fibra, destacável. Tratavam-se, no entanto, de lançamentos virtuais, já que o carro seria inicialmente entregue apenas aos “sócios” da empresa, aqueles que atenderam ao chamado da Gurgel e a ela se associaram, como cotistas, adquirindo um lote de ações em montante aproximado ao preço de venda do carro (mais de 8.000 investidores compareceriam). Aos não acionistas, restava aguardar cerca de dois anos, prazo previsto para a disponibilização do veículo.

Durante a fase de testes dos protótipos o carrinho passou por algumas alterações mecânicas: os discos de fricção da suspensão dianteira foram substituídos pelo tradicional sistema de amortecedores e molas helicoidais (passando por uma versão intermediária, onde mola e amortecedor eram encapsuladas em cilindro de óleo, solução patenteada pela Gurgel sob o nome spring shock); também foi adotada uma caixa de marchas convencional, sincronizada, em lugar do engate rápido. No ano seguinte seria utilizada dupla carburação no motor. Foi observado elevado nível de consumo, provavelmente originado pela concepção geral do carro (motor longitudinal dianteiro e transmissão traseira, com perdas de energia significativas que tinham que ser compensadas por um motor muito pequeno). Para reduzir o consumo, a carburação foi ajustada e se buscou diminuir o peso total, trazendo-o para um limite máximo de 650 kg; com isto, o índice de consumo foi melhorado, passando para uma faixa entre 19 e 25 km/l, dependendo das condições de uso.

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Muito festejado quando chegou, ao longo do uso diário o Gurgel BR-800 revelou grandes deficiências de fabricação e diversos erros de projeto.

Também na carroceria o BR-800 trouxe diversos melhoramentos com relação ao 280-M: a grade ficou maior (ainda que mais convencional); as lanternas traseiras passaram a ter desenho próprio, substituindo as anteriores, do VW Gol; as janelas laterais traseiras aumentaram de tamanho; o estepe foi deslocado do bagageiro para a extremidade traseira, montado verticalmente, passando a ser acessível por uma portinhola externa; as últimas colunas, ainda muito largas, ganharam falsas aletas de ventilação; o painel foi redesenhado (numa versão intermediária, o porta-luvas seria uma maleta 007 removível, idéia logo abandonada).

Algumas deficiências de projeto, no entanto, se mantiveram: má ergonomia para o motorista, especialmente em função da inclinação do volante e do posicionamento dos pedais; jogo de quatro chaves (portas, ignição, porta-luvas e tampa do estepe), em lugar das duas usuais; bagageiro acessado somente pelo interior da cabine; e passagem para o banco traseiro restrita à porta direita, pois o banco do motorista, inexplicavelmente, não era basculante. Em compensação, o BR-800 trazia uma novidade – o primeira brake-light instalado em carro nacional. Em 1990 o projeto do carrinho conquistaria o Prêmio de Excelência em Design, conferido pela Bienal Brasileira de Design.

Para a produção em série do BR-800 a fábrica de Rio Claro foi ampliada em 1987 e 1988, ano em que foi constituída a Gurgel Motores S.A., com lançamento público de ações. Em 1989 foi adquirido um terreno em Eusébio (CE), na Região Metropolitana de Fortaleza, para a construção de uma segunda unidade, destinada à fabricação de câmbios e transmissões (temporariamente produzidos sob encomenda na Argentina) e à montagem do BR-800 para os mercados do norte e nordeste do país. Para a fabricação desses componentes mecânicos a Gurgel pretendia mais uma vez recorrer à Citroën, planejando importar os equipamentos utilizados pela fabricante francesa na linha desativada do 2CV.

Ainda em 1989 foram construídos um protótipo do BR-800 na versão picape e dois na versão furgão, estes para teste pelos Correios. Meses depois foi mostrada na VI Brasil Transpo uma minivan que, apesar de suas linhas desproporcionais e da cintura excessivamente alta, prenunciava a invasão de vans coreanas que o país sofreria na primeira metade da década seguinte. Antes do ano encerrar Gurgel apresentou a maquete de mais um projeto – o pequeno carro urbano esportivo de dois lugares U2, dotado de porta única abrindo de trás para frente, levando junto a capota. Complementando a família BR-800, seria mais veloz do que este. Embora tivesse o lançamento prometido para dezembro de 1990, o U2 não chegou sequer à fase de protótipo.

No ano seguinte o BR-100 ganhou dois níveis de acabamento, o mais completo recebendo o código SL. As dificuldades, entretanto, logo se fizeram sentir. Inicialmente, da mesma forma como ocorrera com o peso e consumo excessivos, também o preço do carro ficou em nível superior ao esperado, embora ainda se mantivesse o mais reduzido do país. Foram registrados defeitos de fabricação e de projeto em quantidade, agravados pelo mau atendimento da reduzida rede de oficinas especializadas. Ainda assim, em dezembro daquele ano o BR-800 chegaria à 1.000ª unidade produzida.

Mas em lugar de priorizar a correção das deficiências do novo carro, João Augusto não cessava de criar. No XVI Salão, em 1990, lançou o Moto Machine, um BR-800 com dois lugares e carroceria simplificada, encurtada em meio metro, porém surpreendentemente mais moderna e fashion que a do irmão mais velho. O Moto Machine deveria dar origem ao Delta – o produto escolhido para ser produzido na fábrica cearense, com lançamento previsto para setembro de 1993, e que seria o modelo básico, popular e de menor preço da marca. Segundo a empresa, as soluções técnicas e estruturais inovadoras do Moto Machine incorporavam “mais de dez patentes”. A concepção do carro era extremamente simples e criativa. Uma estrutura tubular envolvente fazia, a um só tempo, o papel de chassi, “santantônio” e suporte para portas e para-brisas (algo semelhante seria projetado, uma década depois, para o automóvel Smart). Não havia carroceria, mas peças avulsas que compunham o volume do veículo, diretamente afixadas à estrutura periférica: portas removíveis em acrílico transparente, para-brisas rebatíveis e painéis de plástico ABS que faziam a vez de piso, teto, capôs e para-lamas. O motor não era apoiado em coxins, mas suspenso na estrutura do carro (motor pendular); a suspensão traseira também era original – uma combinação de molas helicoidais com feixe de molas em cantilever (apoiado apenas numa extremidade).

Segundo a Gurgel, o Moto Machine seria um carro “quatro por um”, podendo o proprietário escolher, a cada momento, o “modelo” que preferisse usar: com ou sem portas, com ou sem teto, com ou sem para-brisas, “criando a sensação de estar dirigindo uma motocicleta”. O carro disporia de grande variedade de versões, dentre elas a Executiva (cor preta e vidros fumê), a Patrol (modelo policial) e a Chocante (cores vivas e margaridas pintadas). O Moto Machine pesava 40 kg a menos do que o BR-800, com ele planejando-se obter consumo de cerca de 23 km/l. O carro, assim como o BR-800, só seria vendido para o público após satisfeita a demanda dos compradores “sócios”.

A fábrica de Rio Claro continuava a produzir o BR-800, ao ritmo de 250 carros por mês, para atender aos compromissos com os cotistas. Para agilizar a produção, João Augusto criou um sistema giratório de montagem, com seis braços (ao qual chamou Rotamaq), inaugurado em outubro de 1990, que permitia construir um automóvel a cada 20 minutos. Até janeiro de 2001 haviam sido entregues 4.500 BR-800.

Nesse ponto, porém, já vinham sendo indiretamente geradas as condições para a inviabilização da Gurgel, como fabricante de automóveis: a isenção do IPI para carros de cilindrada inferior a um litro, baixada pelo Governo Federal em 1990, levou ao rápido lançamento do Uno Mille, pela Fiat, o primeiro 1.0 produzido em grande série no Brasil (logo depois seguido pela VW e Ford), vindo a criar uma concorrência inesperada – e imbatível – contra o carrinho da Gurgel. A história poderia ter sido diferente caso João Augusto conseguisse focar com clareza a sua atuação e tivesse tomado ao menos duas decisões imprescindíveis naquele momento difícil: em primeiro lugar, fortalecer no mercado os jipes X-12 e Carajás, que sempre foram os carros-chefe da empresa, em lugar de relegá-los a segundo plano e quase abandoná-los; em segundo lugar, investir fortemente no aprimoramento técnico do BR-800 e no seu processo de industrialização antes de lançá-lo com tamanho impacto, prometendo o que não podia cumprir – duas decisões, convenhamos, quase impossíveis de serem assumidas, por incoerentes com a personalidade centralizadora e pouco autocrítica do Presidente da Gurgel.

E assim, ao passo em que persistiam os inúmeros pequenos defeitos do BR-800, a Gurgel começava a perder apoio da imprensa especializada, que sempre vira com bons olhos suas iniciativas. Tal mudança de atitude pode ser bem caracterizada pelo subtítulo de uma matéria da revista 4 Rodas, de abril de 1991: “Muitos erros e poucos acertos de um carro todo brasileiro”. Já três meses antes, quando a revista Mecânica submeteu o carrinho a testes comparativos com o Uno Mille, todas as inconsistências do BR e a falta de cuidado com o seu desenvolvimento ficaram evidentes. Os níveis elevados de preço e consumo de combustível, maiores do que o esperado, o colocavam numa posição frágil diante do Mille, que custava quase o mesmo preço e consumia apenas 10% a mais. O que contrastava fortemente entre os dois carros, no entanto, era a carroceria e sua habitabilidade. O Uno, produto moderníssimo, resultado do estúdio de Giugiaro, um dos maiores designers de automóveis do planeta, criou novo paradigma no projeto de carrocerias de automóveis: espaço interno e acessibilidade excepcionais (para passageiros e bagagem), linhas limpas e facilidade de fabricação em série.

Diante dele, o Gurgel se mostrava um carro primitivo, tosco e descuidado: as soluções técnicas originais e por vezes avançadas conflitavam com opções de projeto inexplicáveis, tais como a tração traseira (que aumentava o peso do carro e diminuía seu desempenho e economia), a pequena distância entre-eixos (que desnecessariamente limitava o espaço útil interno) e a carburação simples. As distâncias de frenagem eram muito ruins e, embora usasse os mesmos componentes de freio do Chevette e fosse mais de 200 kg mais leve do que ele, necessitava de 10% a mais de distância para parar. O BR também foi muito criticado nos quesitos ergonomia e acabamento – críticas recorrentes havia muitos anos, aliás, no que se referia aos produtos Gurgel. Péssimos eram a posição do volante, o espaço, conforto e acesso do banco traseiro, o acesso ao bagageiro, a posição e curso dos pedais. O rebatimento do encosto traseiro exigia o uso de ferramentas e não havia entrada de ar externo para o habitáculo. Por fim, a Gurgel teimava em não fornecer uma chave única para o veículo (ao contrário, cinco diferentes chaves eram necessárias para as diferentes funções).

Em janeiro de 1991, com um ano de antecedência com relação ao previsto, a Gurgel iniciou a venda do BR-800 para o público geral, decisão sobre a qual certamente pesou (embora negado pela empresa) o lançamento de carros econômicos pelos grandes fabricantes. Dois equívocos acompanharam o lançamento: nenhuma das deficiências apontadas no carro foi sanada (apenas o acesso ao bagageiro passou a ser feito por fora, através do basculamento do para-brisa traseiro) e, mais grave, o BR seria vendido apenas na versão “luxo”, mais equipada, a um preço agora maior do que o do Uno Mille. Com este conjunto de maus predicados – baixa qualidade, economia medíocre e preço alto – a simpatia e o apoio da imprensa à criatividade e ousadia da Gurgel por fim terminaram. Em mais de três anos seriam produzidos somente 6.500 carros, contra a previsão de 10.000 em dois anos.

Em dezembro de 1991 a fábrica cearense foi inaugurada com a produção do modelo Moto Machine. Num mau momento, aliás, pois além de cessada a complacência de jornais e revistas com relação às insuficiências do BR (que poderiam ser desculpadas caso seu preço fosse efetivamente muito inferior à concorrência) também começava a se reduzir o interesse dos compradores. O resultado foi a queda das vendas, resumidas a cinco unidades em janeiro de 1992. Em vez de se concentrar na melhoria dos produtos que vinham sendo comercializados, a Gurgel tomava novas direções: prometia um BR com chassi de alumínio para 1993; continuava a desenvolver o Delta (a ser produzido no Ceará, em substituição ao Moto Machine, do qual seriam vendidas somente 177 unidades); e, em fevereiro de 1992, lançava o Supermini, o substituto do BR-800 e sua versão mais “sofisticada”, no extremo oposto do que pretendia fosse o Delta, com muitas alterações na carroceria e melhor acabamento.

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Simpático e engenhoso, Moto Machine foi mais um dos muitos projetos ambiciosos da Gurgel que tiveram vida curta.

O lay-out geral do Supermini era o do BR-800: mesmo conceito de carroceria integrada à estrutura, mesmo motor dianteiro (com potência elevada para 36 cv), tração traseira com eixo rígido, freios a disco na frente. A montagem do motor era pendular, semelhante à do Moto Machine; a suspensão dianteira voltou a receber o sistema spring-shock, que havia sido abandonado pelo BR, e a traseira, ainda não independente, ganhou molas helicoidais, além do feixe e amortecedores. O carro, mais uma vez apresentado pela Gurgel como “o primeiro ‘city-car’ brasileiro”, tentou responder a algumas das críticas à carroceria do modelo anterior: o espaço interno e o acesso ao banco traseiro melhoraram com o aumento de 10 cm no entre-eixos e a adoção de bancos dianteiros rebatíveis e deslizantes; os vidros das portas deixaram de ser deslizantes e o pequeno porta-malas (99 litros) ganhou uma tampa maior; foi adotado novo painel de instrumentos e melhorado o acabamento interno. De resto, nada de notável diante da concorrência: comparado com o Chevette Junior, o automóvel nacional de menor preço em 1992, o Supermini era 39% mais lento e tinha um porta-malas 2,7 vezes menor – sem oferecer grandes compensações, pois era apenas 17% mais econômico e menos de 13% mais barato.

Enquanto isso, embora a crise se avizinhasse célere, o empresário ainda sonhava alto. Continuavam os planos para a produção do Delta no Ceará, mas agora com um chassi aparente de alumínio que conformaria a própria cabine, para-lamas de plástico ABS e novo motor de 800 cm3 que, segundo João Augusto, estaria “sendo desenvolvido pela Lotus inglesa, num acordo que fizemos, para produção em larga escala”. Segundo seus planos, a fábrica de Fortaleza seria inaugurada no final de 1993 e, em dois anos, estaria produzindo 4.000 unidades mensais, inclusive com previsão de vendas maciças para o exterior. Quanto ao Supermini, fazia planos de lançar “o Superconversível, o Supercross, o Superpatrol”. A Gurgel ainda chegou a participar do XVII Salão do Automóvel, em 1972, onde mostrou o único protótipo construído do Supercross.

A queda

Os problemas da empresa, contudo, eram estruturais e não poderiam ser resolvidos sem mudanças profundas na sua Administração – e o Supermini, como todos os demais produtos da Gurgel, disso sofreria as conseqüências. O novo carro foi submetido ao tradicional teste de 60.000 km da revista 4 Rodas, entre julho de 1992 e janeiro de 1995, e o resultado final, após dois anos e meio de uso, foi: “Reprovado”. O carro apresentou graves problemas ao longo do teste, obrigando-o a comparecer 18 vezes a oficinas autorizadas: superaquecimento freqüente, quebra do rolamento do virabrequim aos 8.800 km, troca do diferencial aos 27.500 km, rompimento da carcaça da bomba de combustível e ruptura dos anéis de pistão próximo dos 40.000 km, quebra da suspensão dianteira aos 47.200 km, necessidade de troca do eixo de comando de válvulas e do platô da embreagem ao final do teste. Inúmeros defeitos surgiram na carroceria, fruto do desleixo na montagem e nos acabamentos e do fraquíssimo controle de qualidade na linha de fabricação. Apesar do nível de consumo ter sido o menor entre os carros testados pela revista (média de 14,07 km/l), todos os usuários se queixaram da falta de segurança na estrada, da péssima ventilação interna, da falta de conforto e do elevado nível de ruído e trepidação provocados pelo motor.

O teste de 4 Rodas coincidiu com o período em que a crise da Gurgel dava os primeiros sinais concretos de irreversibilidade: em janeiro de 1993 a linha de produção parou por falta de pagamento dos salários; em junho, inflexível nas negociações com os trabalhadores e sem fornecer carros às revendas havia mais de três meses, a empresa pediu concordata preventiva; a falta de peças de reposição começou a se manifestar na rede autorizada e, em dezembro, sua principal concessionária de São Paulo encerrou os serviços de assistência. João Augusto, no entanto, não percebia (ou não encarava) a negra realidade que se apresentava, só vislumbrando um futuro risonho, fantástico. Continuou a trabalhar no projeto Delta, que agora passaria a ter acabamentos regionalizados. Segundo o novo esquema, a fábrica de Rio Claro forneceria os carros CKD para diversas montadoras franqueadas (à razão de 5.000 unidades mensais), cada qual responsável por uma região do país, e estas agregariam características locais aos carros. Mais tarde propôs a instalação de nova planta industrial para esse fim – a Santos Dumont Motores e Componentes – liberando Rio Claro para a produção de carros completos.

Planos excessivamente ambiciosos para a limitada capacidade administrativa e financeira da Gurgel. Acelerava-se a derrocada. Para a conclusão da fábrica do Nordeste e instalação das máquinas importadas da França, João Augusto contava com participação financeira de US$ 185 milhões, oriunda dos governos dos Estados de São Paulo e Ceará, da Sudene e de um empréstimo do BNDES. O Protocolo de Intenções firmado com os dois governadores, quando da inauguração da fábrica no Ceará, no entanto, se limitava a declarar “irrestrito apoio ao projeto GURGEL BRASIL’ a ser implantado no nordeste do Brasil (…)”, não enunciando qualquer compromisso quanto à alocação de recursos financeiros no projeto. A participação dos dois governos, de fato, não aconteceu, o que também levou ao cancelamento da operação de apoio financeiro do BNDES.

A partir daí foi rápido o processo de aniquilamento: impossibilitada de iniciar a produção do Delta por falta de recursos para a conclusão das linhas de fabricação e sem condições de cumprir seus compromissos frente aos fornecedores, no ano seguinte a Gurgel requereu concordata. Não tendo obtido resposta favorável às solicitações de apoio subseqüentes, enviadas à Presidência da República, e após a manifestação final do MICT, em fevereiro de 1994, expressamente contrária ao aporte de recursos públicos na empresa, “quer sob a forma de empréstimo, quer sob a forma de participação societária”, sua falência foi finalmente solicitada.

Apesar disto, João Augusto não parou de produzir projetos: construiu um protótipo rústico para exportar para a China, projetou o Supemini SL, para substituir o Supermini BR, com maior distância entre eixos, vão livre do solo e altura interna, novo painel, teto solar de lona e carroceria alterada (para pior) e, como se fosse pouco, pensava “para futuro próximo” num novo jipe, o Supermil, com motor de um litro, de projeto próprio…

Na busca de soluções para a empresa, algumas oportunidades de recuperação foram perdidas por inflexibilidade de seu proprietário: os trabalhadores, assessorados pelo Dieese, propuseram compartilhar a administração da Gurgel, como forma de salvá-la, mas João Augusto não admitiu considerar a hipótese; um conjunto de concessionários iniciou gestões para a retomada da produção, mas João Augusto não aceitou “interferências” nos seus negócios. Assim, com o seu quadro de pessoal resumido a 30 funcionários dedicados ao fornecimento de peças de reposição e à montagem de alguns poucos jipes Tocantins, sob encomenda, um galpão industrial no Nordeste com todos os equipamentos necessários à fabricação de motores sem nunca ter operado, concordatária havia dois anos, saturada de dívidas com ex-funcionários e fornecedores, a Gurgel chegava ao fim: em 14 de fevereiro de 1995 solicitou autofalência, sancionada em setembro do ano seguinte. Construíra cerca de 43.000 veículos nos seus 25 anos de vida. Em 1991 atingira seu recorde histórico de produção, com 3.746 unidades; nos 30 meses anteriores à falência lograra fabricar não mais do que 130 veículos.

Só então João Augusto decidiu procurar apoio externo, em outubro de 1995 assinando acordo de joint-venture com uma empresa de participações irlandesa, através do qual venderia 51% da firma em troca da amortização das dívidas, retirada da concordata, retomada da produção e conclusão da fábrica no Ceará. Mas também esta negociação não teve continuidade. Em meio a tais tentativas ainda construiu mais um veículo – que seria seu último –, o canhestro Motofour, que (mais uma vez) pretendia fosse um intermediário entre automóvel e motocicleta. O carro utilizava a mecânica e estrutura do Delta, com menor largura e para-lamas salientes; não tinha portas, teto nem para-brisas e o motorista sentava em posição central.

 

Até a invalidez que o alcançou em 1997, João Augusto lutou pelo sonho de criar um automóvel brasileiro. Se é verdade que suas estratégias foram muitas vezes equivocadas e os seus sonhos ilusórios, também é real que nunca alguém, no Brasil, chegou tão longe nessa intenção. Com grande criatividade e rica imaginação, foi personagem marcante na história da indústria automobilística brasileira, levando o nome do país para mais de 40 nações para onde, durante muitos anos, exportou seus carros e com quem chegou a negociar transferência de tecnologia e implantação de linhas de montagem (Panamá e Indonésia, entre outros). Apesar do fracasso final, foi uma história de importantes conquistas técnicas para o país.

Administradas pela Massa Falida, as instalações da Gurgel foram sendo metodicamente depredadas e saqueadas ao longo dos anos. Nenhuma das muitas tentativas de leilão, desde 2001, teve sucesso. Em 2007 foram finalmente desapropriadas pela Prefeitura Municipal de Rio Claro, com o objetivo de voltar a utilizá-las como área industrial. No interior da fábrica ainda se encontravam uns poucos carros inacabados, testemunhando os sonhos frustrados do engenheiro João Augusto do Amaral Gurgel.

Este pioneiro e grande visionário faleceu a 30 de janeiro de 2009, aos 82 anos de idade.





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