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As primeiras instalações para produção de material bélico no Brasil (fundição de canhões e fábrica de pólvora) surgiram ainda no período colonial, mas foi a partir do início da República, especialmente após a Revolução de 30, que elas se diversificaram e especializaram. Foram então criadas unidades específicas para explosivos, granadas, armas leves, produtos químicos e equipamentos de comunicação. Uma única, em 1933 (em Curitiba, PR), se dedicava à fabricação de veículos – ainda assim, restrita a viaturas de tração animal e embarcações fluviais.

A motorização do Exército Brasileiro foi relativamente tardia, apenas no início da década de 20 sendo incorporados os primeiros caminhões, de marca Ford, já montados no país. Em 1923, na cidade do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), foi criado o Serviço Central de Transportes (SCT), a primeira instituição do Exército a contar com instalações para a montagem e manutenção de viaturas automóveis. Como usual na época, os veículos novos eram geralmente fornecidos sem carroceria e cabina (apenas chassi, capô e para-lamas), sendo estas fornecidas por artesãos ou oficinas especializadas: o SCT preparou-se para tal, organizando seções de carpintaria e funilaria para complementar os veículos e adaptá-los às funções militares. (Dadas as dificuldades de comunicação terrestre, os serviços não eram centralizados no Rio e diversas outras unidades do Exército também procediam à construção de carrocerias e à transformação de veículos.)

Outro capítulo, este na via da mecanização, abria-se simultaneamente, com a importação, em 1921, dos primeiros carros de combate blindados da América do Sul – 12 unidades francesas Renault, de 6,5 t. (No jargão militar, o termo “motorização”, aplicado a veículos de transporte e apoio, diferencia-se de “mecanização”, que trata dos equipamentos blindados e de combate.) Este tipo de veículo, que junto com a aviação foi a grandes “estrela” da I Guerra Mundial, provocou grande interesse no país, induzindo o falso julgamento de ser arma vital em qualquer tipo de confronto. Assim, diversos foram construídos em momentos de conflito, como nas Revoluções de 1924, 30 e 32, quer para complementar a reduzida frota federal, quer para fortalecer os revoltosos.

As primeiras tentativas ocorreram em 1924, quando a Força Pública do Estado de São Paulo encomendou a oficinas ferroviárias a preparação de dois caminhões para enfrentar as tropas federais, contra quem o governo estadual sublevara-se: o primeiro recebeu blindagem de madeira, recheada com sacos de areia, torre fixa e uma metralhadora de 7 mm; o segundo foi revestido com chapas de aço, cinco seteiras e entrada por porta traseira. Extremamente pesados e com ângulo de visão limitado, os dois carros tinham baixa mobilidade e não se mostraram operacionais, nem chegando a ser utilizados.

A Revolução de 30 trouxe nova leva de blindados. Embora sem nenhuma preocupação com a padronização, já denotavam melhor preparo técnico na sua fabricação, diversos deles tendo sido postos a prova em confrontos armados. Os mais “ousados”, conceitualmente, foram os três tratores transformados em carros de combate sobre lagartas, no Rio Grande do Sul. Dois deles foram projetados e construídos pelos Estaleiros Alcaraz & Cia. Ltda., de Porto Alegre (RS), empresa criada na década de 20 por Joaquim Alcaraz, que antes trabalhara como mecânico na empresa jornalística gaúcha Caldas Jr. e, anos depois, tornou-se um dos seus dirigentes. Batizados Minas Geraes e Rio Grande do Sul, foram respectivamente montados sobre um trator de esteiras e um trator agrícola, cujas rodas foram substituídas por tambores de aço e tiveram a posição invertida para receber as lagartas. O terceiro blindado (Parahyba) foi preparado pelo Estaleiro Mabilde, também de Porto Alegre, seguindo o mesmo esquema construtivo. Os três carros, construídos em chapa de aço rebitada, foram camuflados nas cores verde e cinza claro e pelo menos um deles (o trator de esteiras Minas Geraes) chegou a participar de operações de combate, uma delas durante a Revolução Constitucionalista de 32.

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Blindado sobre automóvel Chevrolet, construído em Palmyra (MG) durante a Revolução de 30 (fonte: Expedito Carlos Stephani Bastos).

Outros veículos pioneiros foram montados em Minas Gerais e na Paraíba. Em Belo Horizonte um caminhão Ford recebeu blindagem de aço e uma grande carroceria fechada, com diversas seteiras para fuzil e espaço para 13 soldados equipados; em Uberaba, foi tomado como base um caminhão Thornycroft inglês, sobre o qual foi fabricada carroceria de aço com torre fixa; em Palmyra (hoje Santos Dumont), técnicos alemães ajudaram a blindar um automóvel Chevrolet, serviço executado nas oficinas ferroviárias da cidade. Por fim, em Campina Grande, na Paraíba, mais um caminhão recebeu grande carroceria fechada blindada em aço, com diversas seteiras. Durante a revolta de 1932, a iniciativa e criatividade partiram das forças rebeldes paulistas, que patrocinaram a construção de seis trens e seis veículos blindados, inclusive lança-chamas; ao contrário da improvisação de 1924, dessa vez foi solicitado o concurso da Escola Politécnica para o projeto e de firmas especializadas em caldeiraria para a realização dos serviços.

A II Guerra Mundial e o alinhamento do Brasil com os EUA ocasionaram longo período de dependência e imobilismo. A partir de 1943, grande quantidade de armamentos chegou ao país (tanques leves Stuart, meias-lagartas M-3, tanques médios Grant e Sherman, blindados sobre rodas M-8), processo que continuou, com equipamentos mais modernos, após a assinatura do Acordo Militar com os EUA, em 1959. Enquanto isso, por mais de 30 anos apenas um veículo militar foi aqui projetado – e nenhum construído. Se, por um lado, isto é fato, por outro se constata que as Forças Armadas aproveitaram o período para criar uma sólida estrutura de formação de pessoal técnico e de pesquisa: Escola Técnica do Exército (1933), Instituto Militar de Tecnologia (1941), CTA (1941), ITA (1950), IME (resultante da fusão da ETE e IMT) e Instituto de Pesquisas da Marinha (1959).

Estas instituições tiveram importante papel no processo de implantação da indústria automobilística brasileira, quer desenvolvendo pesquisas pioneiras (tal como o protótipo de um motor de combustão interna, apresentado em 1957), quer apoiando o GEIA, como órgão técnico, realizando o primeiro cadastro de autopeças e componentes produzidos no Brasil, atualizando a lista de similares nacionais e abrindo as portas de seus laboratórios para testes pelos fabricantes instalados no país. Mesmo a Marinha contribuiu, através da Fábrica de Artilharia, fornecendo à Mercedes-Benz e GM matrizes para estamparia e forjaria.

Foi o IME que instituiu o primeiro curso de especialização em engenharia de automóveis do país, em 1947; foi também lá que teve origem o único veículo militar concebido nesse longo período. Batizado Cutia, foi projetado entre 1958 e 59 por alunos do curso de automóveis; teve um único protótipo, construído na FNM, em 1965. Concebido como veículo de reconhecimento de grande velocidade e altura reduzida, era um carro aberto que comportava tripulação de quatro homens sentados ou dois deitados (neste caso, o piloto e um artilheiro). Recebeu o motor de quatro cilindros e 95 cv do FNM JK, montado na traseira, e suspensão independente nas dez rodas de apoio, com barras de torção Volkswagen; estava armado com uma metralhadora .30 e um lança-rojões. (Estranhamente deslocados nesse veículo militar pintado em verde oliva fosco, estavam o logotipo cromado da Fábrica Nacional de Motores e o sofisticado painel de instrumentos do JK, o carro nacional mais caro de então.) Vale ressaltar que o pioneirismo do Cutia não se prendia apenas ao fato de ter sido o primeiro projeto brasileiro de blindado de lagartas, mas ao seu conceito construtivo e ao momento em que surgiu, utilizando componentes de veículos de série menos de dois anos após a instalação da primeira indústria automobilística no país.

Depois desta tentativa, apenas a partir de 1967 o acúmulo de conhecimentos de quase três décadas começaria a dar resultados quantitativos no âmbito da produção de viaturas militares. Naquele ano o Exército criou um grupo de trabalho formado por oficiais engenheiros de automóveis, instalado no Parque de Motomecanização da 2ª Região Militar (PqRMM/2), em São Paulo, destinado a planejar o reequipamento das Forças Terrestres do país. Os estudos – que culminariam, mais de dez anos depois, na grande (e curta) proeminência do país como fornecedor mundial de armamentos – compreenderam três fases, por vezes simultâneas: projeto de remotorização de viaturas usadas, projeto de blindados sobre rodas e projeto de carros de combate sobre esteiras. Na primeira fase foi desenvolvido grande programa de reforma e modernização de caminhões, com especial preocupação na troca dos dispendiosos motores a gasolina por unidades diesel. Dois projetos de especial sucesso: repotenciamento da frota de carros de reconhecimento M-8 (6×6, fabricados pela Ford), que teve o motor a gasolina substituído por um Mercedes-Benz diesel nacional e trocadas a caixa de marchas e o sistema de freios; e modernização dos diversos modelos de carros meia-lagarta, que receberam motores diesel Perkins e novas esteiras, desenvolvidas pela Novatração.

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Blindado leve Cutia com mecânica FNM JK: projetado e construído por alunos do IME, foi o primeiro veículo militar nacional em quase três décadas (fonte: site shushpanzer-ru).

Sob projeto do Exército, cerca de 80 tanques Stuart foram modernizados pela Bernardini e uma quantidade de tratores de artilharia M-4 (fabricados nos EUA pela Allis-Chalmers) reformada pela Moto Peças. Em 1969 foi iniciado um trabalho sobre o tanque Sherman (do qual o Exército dispunha de 80 unidades), envolvendo troca da transmissão e do motor radial, substituído por um V12 diesel nacional da MWM; neste caso, o protótipo foi concluído, mas o projeto não teve seguimento. Dois projetos despretensiosos foram desenvolvidos e construídos em exemplar único, na passagem da década: um veículo leve para transporte interno no PqRMM/2, montado sobre chassi e mecânica do Jeep Willys; e um protótipo de mula-mecânica (viatura leve e espartana, própria para ser lançada por para-quedas), feita no Rio de Janeiro, com tração 4×4, motor traseiro VW refrigerado a ar e eixos e suspensão também do Jeep Willys. (Outra mula-mecânica seria projetada no final da década de 70 pela Jamy, sob orientação do Exército; o protótipo foi concluído em 1979, todavia, como os demais, jamais foi produzido em série.)

Em 1972, em conjunto com a Gurgel, foi desenhado um pequeno anfíbio 6×6, apelidado Transa (de Transamazônica); acionado por motor VW traseiro refrigerado a ar, era dotado de duplo sistema de direção (rodas dianteiras esterçantes ou, como nos tratores de esteira, imobilização das rodas de um lado e tração no lado oposto); sua carroceria, com capacidade para quatro passageiros e 500 kg de carga, era construída pelo processo plasteel, patenteado pela Gurgel (estrutura tubular envolvida por fibra de vidro); ainda neste caso só foi construído o protótipo.

A segunda fase do programa de modernização teve como meta inicial o projeto de um blindado de reconhecimento 4×4, em substituição ao M-8 norte-americano. Designado VBB-1, o carro foi desenvolvido em menos de dois anos, graças à adoção de grande quantidade de elementos mecânicos já utilizados pela indústria automobilística em veículos de série. A carcaça blindada foi construída pela Trivelatto e a torre giratória fundida pela Aliperti, porém motor (de seis cilindros e 120 cv, montado na traseira), caixa e eixos vieram da Mercedes-Benz. Tinha capacidade para quatro homens e era equipado com canhão de 37 mm. Tratava-se de uma viatura convencional, sem novidades com relação às antecessoras, não adotada pelo Exército, que preferia uma versão 6×6. Seu desenvolvimento, no entanto, serviu de “escola” para a equipe de projetos do PqRMM/2: com ele, não só consolidou conhecimentos sobre blindagens, como capacitou-se para projetar, em ainda menos tempo, uma viatura mais complexa e atualizada – o 6×6 VBR-2.

O primeiro protótipo do novo carro foi concluído em 1970, com a mesma mecânica Mercedes-Benz do 4×4, porém com suspensão boomerang Engesa e torre com canhão de 37 mm do antigo M-8. Em 1971 o Exército contratou com a Engesa a construção de uma pré-série de oito veículos; surpreendentemente, também cedeu à empresa os direitos de comercialização do equipamento, sem nenhuma exigência de contrapartida para o Governo Federal – qualquer compartilhamento de ganhos, pagamento de royalties, ou mesmo direitos de propriedade intelectual e patentes. A viatura foi relançada com a designação EE-9 Cascavel e tornou-se sucesso internacional da Engesa; deste modelo, o Exército Brasileiro adquiriu mais de cem unidades. Em paralelo com o desenvolvimento do 6×6, a equipe de engenheiros militares concebeu o CTTA (Carro Transporte de Tropas Anfíbio), do qual foi construído um modelo em escala 1:1, também com tração 6×6, porém com os três eixos eqüidistantes; o projeto também foi cedido à Engesa, que o adaptou ao conceito do Cascavel (mesma carroceria e suspensão boomerang), lançando-o como EE-11 Urutu. Também foi muito vendido no exterior.

Em 1977 as perspectivas da indústria bélica brasileira eram brilhantes: equipes técnicas das três armas desenvolviam ambiciosos projetos de equipamentos, procurando dispor de armamentos tecnologicamente modernos, o mais próximos possíveis do “estado da arte” mundial, ainda que tendo que se limitar à realidade orçamentária nacional; os programas de modernização do parque de viaturas do Exército estavam em franco progresso; a Engesa já colhia reconhecimento internacional, fruto da atuação dos seus blindados em operações de guerra real; o setor bélico envolvia diretamente três centenas de empresas brasileiras, movimentando recursos intelectuais, humanos e financeiros consideráveis. Foi neste cenário que o governo militar denunciou o Acordo Militar Brasil – Estados Unidos.

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Projetado no final da década de 60, o VBB-1 foi o primeiro blindado moderno de construção nacional. A fotografia mostra a segunda versão, com pneus à prova de bala, dispensando o estepe montado na lateral (fonte: Expedito Carlos Stephani Bastos).

Dois anos antes o Exército implementara profundo rearranjo na sua estrutura produtiva: foi criada a Imbel – Indústria de Material Bélico do Brasil, empresa estatal vinculada ao Ministério do Exército, que absorveu todas as unidades fabris da Arma, exceto seus três Arsenais de Guerra (Rio, São Paulo e General Câmara, no Rio Grande do Sul). A partir daí, a reforma, nacionalização de componentes e fabricação de peças e material bélico passaria a ser responsabilidade dos Arsenais –mantido, por suposto, o relacionamento de “mão única” com os fabricantes privados. Em 1982 foi criado o CTEx – Centro Tecnológico do Exército. A partir daí, a estrutura de pesquisa do Exército passaria por diversas alterações – fusões, extinções –, dando origem ao atual DCT (Departamento de Ciência e Tecnologia) que, juntamente co o CTEx, é hoje o principal órgão de desenvolvimento da Arma.

O rompimento do Acordo Militar trouxe novo impulso à nossa indústria de armamentos; em 1982, apesar da recessão econômica, o Brasil era o 5º maior exportador do mundo, no setor. O Programa Nacional de Material Bélico evoluía normalmente, sendo ainda favorecido pelo decreto-lei que isentou de impostos e taxas as importações destinadas à realização de programas dos ministérios militares (a medida permitiu corrigir uma distorção fiscal, que os obrigava a adquirir equipamentos nacionais por preços superiores aos praticados para exportação). A terceira fase do programa de modernização das Forças Terrestres já se iniciara, com encomendas de protótipos de tanques sobre lagartas à Bernardini, Engesa e Motopeças; em paralelo, o CTEx (que passara a gerir o programa de modernização) promoveu a reforma dos anfíbios M113, importados dos EUA no início da década de 70, serviço também executado pela Motopeças. No extremo oposto da sofisticação e complexidade destes projetos, a Brigada Paraquedista do Exército promoveu a montagem de quatro veículos classificados como “de assalto rápido“, que receberam o nome Condor: extremamente simples, não passavam de gaiolas militarizadas, com a mesma concepção das esportivas (estrutura tubular aberta, motor VW traseiro refrigerado a ar, suspensão VW), acrescidas de metralhadora e lança-rojões.

A euforia era grande, portanto, e as expectativas de avanço perdoavam (ou faziam ignorar) as relações quase promíscuas que cada vez mais se formavam entre as instâncias públicas e privadas, a ponto de José Luiz Whitaker Ribeiro, presidente da Engesa (que apesar da aparente solidez, já apresentava graves problemas financeiros), ser nomeado presidente da Inbel. Era sua intenção transformar esta empresa pública numa espécie de trading da indústria de armamentos, tornando mais agressiva a ação comercial externa, coordenado a produção dos vários fabricantes e buscando associar às vendas de equipamentos também o fornecimento de serviços, assistência técnica e infra-estrutura – enfim, uma visão “moderna” de comércio externo, há muito praticada pelos países mais ricos do globo.

Entretanto, da mesma forma que a ascensão foi meteórica, também a queda foi abrupta: o cenário mundial mudava rapidamente (fato inimaginável, no final de 1991 a União Soviética já não mais existiria como nação), fazendo minguar a demanda dos países menos desenvolvidos, até então os maiores clientes dos simples e resistentes armamentos brasileiros, enquanto que potenciais clientes ricos, tais como a Arábia Saudita, submetiam-se a pressões ou a interesses políticos e se voltavam para os grandes fornecedores mundiais. Neste cenário, “da noite para o dia” a simplicidade dos equipamentos nacionais passou a ser vista como atraso tecnológico: os “pobres”, que se interessavam por nossas armas, deixavam de comprá-las; os “ricos” desejavam mais sofisticação; sendo exíguo o mercado interno, a perda de competitividade dos equipamentos aqui projetados foi a conseqüência natural. Em março de 1990 a Engesa – o grande símbolo da década – entrou em concordata; em março de 1990 assumiu o governo Collor, que ignorou as conseqüências que a perda de tantos conhecimentos e tecnologia acumulados e o desmantelamento do setor trariam para o país; em 1993 foi decretada a falência da Engesa, em 95 da Bernardini. Com o fechamento ou a saída do setor da maioria dos demais fabricantes, o Exército regrediu ao estágio dos anos 50, voltando a importar material usado e quase nada produzindo no país.

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Viatura Gaúcho, desenvolvida em conjunto pelas forças armadas argentina e brasileira; a imagem mostra duas unidades empilhadas, a inferior semi-desmontada, para otimizar o transporte por aviões (fonte: site basemilitar).

Diversos outros fatores agravavam o quadro, que em linhas gerais perdura até hoje, a começar pelo contínuo enfraquecimento das funções estatais no Brasil, com o conseqüente desprezo pelo planejamento, abandono de políticas industriais e de ações de fomento – atividades julgadas pouco compatíveis com a “desejada globalização da economia”. Junte-se a isto a forte redução dos orçamentos militares, acentuada no governo Collor; o limitado mercado interno para equipamentos militares; a farta disponibilidade de armamentos usados no exterior, resultado do final da Guerra Fria; o imediatismo nos próprios quadros das Forças Armadas, que muitas vezes preferem a compra externa ao processo mais lento de desenvolvimento e produção internos (segundo especialistas militares, causa estranhamento a potenciais clientes estrangeiros o fato das nossas próprias Forças Armadas não adotarem equipamentos brasileiros); e, finalmente, a falta de empenho de adidos militares e diplomatas brasileiros na divulgação do produto nacional, ao contrário da prática estrangeira, segundo a qual as embaixadas são ponta-de-lança para a exportação de bens do país.

Mais de dez anos se passaram até que o Exército Brasileiro voltasse a dar alguns passos no sentido da produção local de viaturas. Assim, após a chegada de equipamentos importados usados de diversas origens e categorias, em 2001 foi dado início à recuperação de toda a frota de viaturas Cascavel e Urutu, com o apoio da Ceppe e Columbus, empresas formadas com corpo técnico especializado originário da Engesa. Efetuada pelo Arsenal de Guerra de São Paulo (AGSP; em 1997 incorporou o PqRMM/2), compreendia a revisão completa da carroceria, elementos mecânicos e armamento, com troca de peças e alteração de alguns componentes. Uma segunda fase previa modernização do armamento, incorporação de dispositivos de visão noturna, telemetria e proteção QBN. Embora haja capacidade instalada para a entrega de sete unidades por mês, a limitação de recursos vem retardando os trabalhos, até hoje não tendo sido concluída a primeira fase do projeto. (Exemplo significativo das dificuldades encontradas, resultado da desmontagem da indústria de material militar brasileira, é o abastecimento de pneus blindados: antes produzidos no país, pela Novatração, passaram a ser importados após a falência da empresa.)

Finalmente, novas viaturas voltaram a ser projetadas e construídas. Partiu-se do projeto mais simples, um veículo leve de apoio com tração nas quatro rodas: o jipe Marruá. Três protótipos foram construídos no AGSP, pela Ceppe/Columbus; apresentados em fevereiro de 2003, o projeto foi logo adquirido pela Agrale, que dois anos depois o colocou em produção industrial, em várias versões civis e militares. Quanto aos blindados leves, o primeiro produto da retomada foi o Guará, resultado do trabalho conjunto entre o IPD (Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento do Exército; integrado ao CTEx a partir de 2005) e a Avibrás.

Em 2004 iniciou-se um projeto conjunto com a Argentina, inédita cooperação com exércitos sul-americanos na concepção de equipamentos militares. O objetivo era disponibilizar um veículo 4×4 aerotransportado, com estrutura tubular e motorização diesel. Coube ao exército argentino o projeto da estrutura, carroceria, suspensão e direção, e ao brasileiro a transmissão, motor, armamentos e sistema elétrico. O protótipo do corpo do carro, com suspensão independente de longo curso por molas helicoidais nas quatro rodas, chegou ao Brasil em junho de 2005 e em poucos meses foi completado, ganhando motor MWM turbo (quatro cilindros, 132 cv) e pequena modificação estética na dianteira (capô plano e quatro faróis); com o nome Gaúcho, foi oficialmente apresentado em março de 2006, em Brasília, às autoridades militares brasileiras. Classificada como Viatura Leve de Emprego Geral Aerotransportável, para aplicação em forças de ação rápida, tinha apenas 1,05 m de altura, capacidade para até quatro homens e 450 kg de carga, além de metralhadoras e mísseis anti-tanque. Suas características de desempenho eram: velocidade máxima, 120 km/h; ângulo de entrada, 50°; ângulo de saída, 42°; rampa máxima, 60%; vau, 0,52 m; obstáculo vertical, 0,36 m.

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Guarani: fabricado pela Iveco, é o mais recente projeto de viatura blindada conduzido pelo Exército Brasileiro (fonte: site defesaaereanaval).

Pouco mais de seis meses depois da apresentação oficial do Gaúcho, foi mostrado às autoridades outro protótipo de viatura da mesma categoria, batizado Chivunk (grito de guerra dos paraquedistas do Exército). O carro era em quase tudo semelhante àquele projetado com a Argentina (estrutura tubular, suspensão, motor, tração), não se compreendendo, num ambiente tão carente de recursos, a razão do desenvolvimento simultâneo dos dois modelos. O projeto foi iniciado em 2003, no IPD; o protótipo foi construído no AGSP pela Columbus, que em 2007 recebeu a encomenda de mais duas unidades para testes. (O Gaúcho, por seu lado, continuou em desenvolvimento, na Argentina, prevendo-se sua produção seriada, enquanto que no Brasil ficou restrito a um único protótipo.)

Em agosto de 2005, por fim, foi tentado um passo mais largo, ao se lançar edital de licitação para a elaboração do projeto de uma Viatura Blindada de Transporte de Pessoal (VBTP), 6×6 e anfíbia, para substituir os velhos Urutu ainda em operação. Tratava-se de uma proposta modesta, já que os modelos estrangeiros mais modernos eram todos 8×8, porém auspiciosa, pois finalmente daria início à muito aguardada Nova Família de Blindados sobre Rodas. Para assegurar menores custos de fabricação, diversas inovações foram abandonadas, os termos de referência do edital prevendo, além da tração 6×6, motor dianteiro Cummins ou Mercedes-Benz, transmissão automática, suspensão independente nas seis rodas e capacidade para dez homens. Dessa vez, além de definir padrões mínimos de performance, o Exército procurou precaver-se contra erros do passado, fazendo registrar no documento que “todos os direitos de propriedade, inclusive intelectual, (…), bem como os direitos atinentes à eventual exploração dos respectivos resultados, serão exclusivos do EB“. A concorrência (aberta também a empresas estrangeiras que, porém, não se apresentaram) foi vencida pela Columbus, mas o processo foi cancelado por falta de verbas.

Nova licitação foi lançada em abril de 2007, já agora incluindo a construção do protótipo e pré-série de 16 unidades. O projeto conceitual do carro, apresentado pelo DCT, previa transportabilidade aérea em cargueiros Hercules, capacidade noturna, baixo registro térmico e de radar, velocidade elevada, GPS, sistema de comunicação com transmissão de voz, dados e imagens e grande número de versões: transporte de pessoal, reconhecimento, socorro, comunicações, oficina, porta-morteiros, ambulância, posto de comando e diretoria de tiro. Inicialmente chamado Urutu III (depois oficialmente batizado Guarani), o veículo deveria ter carroceria monobloco, torre blindada de acionamento elétrico com metralhadora .50, freios a disco com ABS nas quatro rodas da frente, direção hidráulica sobre os dois primeiros eixos, proteção contra minas, ar condicionado, painel digital com sistema de diagnose e capacidade para 13 homens equipados (em lugar dos dez anteriormente previstos). O edital recomendava peso máximo de 16,5 t, utilização máxima de componentes seriados e índice de nacionalização mínimo de 60%.

A segunda licitação foi vencida pela Iveco, que construiria os veículos em sua fábrica de Sete Lagoas (MG); especialistas criam que a empresa traria para o projeto sua experiência italiana, onde fabrica blindados 4×4, 6×6 e 8×8 para o exército do seu país. Assinado o contrato em dezembro de 2007, prevendo a fabricação de 2.044 unidades entre 2012 e 2030, foi construído um modelo em escala 1:1, exposto na LAAD 2009, no stand da Iveco. Na ocasião, foi anunciada a escolha da empresa israelense Elbit como responsável pelo projeto e fornecimento das torres móveis para receber os armamentos previstos – metralhadoras coaxiais, lança-granadas fumígenas e canhões de 30 mm. No final de 2010 o primeiro protótipo foi concluído.

Com o desenvolvimento da viatura, algumas especificações foram alteradas ou melhor definidas; passou-se a ter, além do previsto no edital, motor FPT common rail de 383 cv, suspensão hidropneumática, freios a disco nas seis rodas e peso máximo de 17,5 t. Quanto ao armamento, das cinco primeiras unidades entregues, uma recebeu torre UT30-BR, produzida pela AEL; uma a torre Remax de acionamento remoto, desenvolvida pela Ares, com estabilização total e sistemas de visão térmica e telemetria a laser; e uma a torre australiana Allan-Platt de acionamento manual. As três eram dotadas de metralhadoras coaxiais e lançadores de granadas de fumaça. Posteriormente, Exército e Ares projetaram a torre TORC30, própria para receber canhão Rheinmetall de 30 mm, de origem alemã, capaz de operar em inclinações entre -5o e +85o. (AEL e Ares são subsidiárias brasileiras da Elbit.)

Entre os últimos projetos coordenados pelo Exército estão dois prosaicos blindados para a polícia do Estado do Rio de Janeiro. O primeiro, apresentado em outubro de 2007 com a designação VEsPa-01 (Viatura Especial de Patrulhamento), foi desenvolvido em conjunto com a Agrale, que forneceu o chassi com motor MWM de 140 cv (o mesmo utilizado nos micro-ônibus Volare) e a Autolife, que fabricou a carroceria, com acomodação para cinco policiais e seis presos, blindagem resistente a tiros de fuzil e pneus também blindados. O segundo (VEsPa-02), de 2010, também construído pela Autolife, desta vez sobre chassi Volkswagen com potência de 150 cv, destinava-se ao transporte de tropas; com capacidade para oito soldados, podia ter tração em duas ou quatro rodas.

O mais recente – e o mais importante deles – é, contudo, o projeto da versão 8×8 do Guarani, cuja decisão de desenvolvimento foi oficialmente anunciada pelo Exército em setembro de 2012.

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